Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Suingue nos Guettos

 

(A autoria é do colaborador Gustavo Cerqueira).

 

Parece até que Luisinho faz carinho nas peles do tambor quando toca. Dizem que o encontro entre eles se dá mesmo é de olhos fechados, tanta é a intimidade. O suor escorre pelo rosto, a marcação firme faz tremer a terra sob os pés e seu corpo convulsiona até se fundir com o instrumento, fosse ele uma extensão de seu corpo. A cada palmada no couro do atabaque, dá a sensação de que a gente em volta vai acessando algum lugar do sagrado, um lugar que traz consigo a voz de outras vidas, outras gerações. A partir daí, não tem mais jeito. Os olhos marejam, o baque se sente fundo e até o cabra mais desconfiado se surpreende com as mãos procurando uma superfície para brincar sons e acompanhar a batucada.

 

Aloisio Ferreira – o Mestre Luisinho – tem a música inscrita em sua história mesmo desde antes de nascer. Seu pai era um viajante multi-instrumentista e seu avô foi presidente de um bloco de percussão em Ilhéus, sua cidade natal. Sob o olhar atento do pequeno, os muitos instrumentos do bloco que ficavam em casa eram o cenário perfeito para a fantasia e para a experimentação. Tanto foi assim, que aos oito anos de idade Luisinho começou, ele também, a criar seus próprios instrumentos. Objetos encontrados pela rua eram reinventados e renasciam como tambores de lata. Com naturalidade, em pouco tempo o jovem instrumentista ganhou as ruas a tocar no Bloco Axé Odara, na ala de dança e percussão. Se a música era sua arte, o barro das ruas servia como matéria prima para modelar esse percussionista de andamento acelerado. “Hoje em dia quando fico sem tocar, eu fico doente. Daí, já sei: É só pegar um violão ou um atabaque e aos poucos começo a ir me sentindo melhor ”, conta Luisinho.

 

Mestre Luisinho em sua casa e oficina. Foto: Gustavo Cerqueira.

(Mestre Luisinho em sua casa e oficina. Foto: Gustavo Cerqueira.)

 

Com o tempo, o menino cresceu. E esperto que era, para não perder a saúde, tratou de não se afastar mais da música. Foi assim que muitos anos depois, já em Serra Grande, ele fundou o Suingue nos Guettos, grupo de resistência e preservação da cultura negra. O projeto envolve oficinas de percussão para crianças e adolescentes, aulas de teoria musical, confecção de instrumentos e pretende incluir atividades de dança em um futuro próximo. O começo do grupo remonta ao ano de 2012, quando Luisinho recebeu um convite do Instituto Arapyaú – organização não governamental local – para dar oficinas de percussão na região. Surgia então o Levada da Serra, projeto social que atendia em torno de 120 crianças na escola e creche da região. “A música, que sempre esteve muito presente na minha vida, é uma forma de me conectar com a minha origem, com a minha ancestralidade. E quando eu comecei a dar oficinas, senti que tinha o mesmo efeito nos meninos”, explica Luisinho.

 

Atualmente, o grupo conta com cerca de vinte participantes que se encontram de três a quatro vezes na semana, ensaiando às terças e quintas e saindo às sextas em cortejo pelas ruas da comunidade. Eles também saem aos sábados, a cada quinze dias, para tocar em diferentes bairros de Serra. Ao longo de sua trajetória, o grupo reuniu um repertório com algumas composições próprias e começa agora a realizar suas primeiras apresentações por cidades do estado da Bahia.

 

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(Ensaio do grupo Suingue nos Guettos. Foto: Suingue nos Guettos.)

 

Se Mestre Luisinho foi iniciador e fundador do grupo, hoje o Suingue nos Guettos ganha sua identidade no encontro de muitos. O projeto foi sonhado junto com todos os participantes e o planejamento foi feito de forma colaborativa, com base no Dragon Dreaming, metodologia que estimula a criação de projetos com propósito que fortaleçam vínculos nas comunidades e estejam ancorados nos pilares da sustentabilidade. Nesse processo, a necessidade de expandir a rede de apoio e parcerias levou as oficinas de percussão a serem oferecidas como um dos roteiros do Turismo de Base Comunitária – outro projeto de pulso firme que apareceu aqui no Rapadura de dezembro de 2015.  A expectativa é que a chegada de visitantes interessados em experiências significativas e imersões culturais possa contribuir com a sustentabilidade financeira do coletivo.

 

Para o futuro são muitos os sonhos. Dentre eles, repassar os saberes de confecção dos tambores para todos, em uma fábrica de instrumentos. Além da transmissão de um ofício, aumentar a quantidade de instrumentos seria uma forma de fortalecer o grupo e incluir outros participantes, já que hoje o número é limitado por conta disso. Recentemente, o Suingue dos Guettos foi premiado com uma bolsa para apoiar a confecção de novos instrumentos, concedida pela Taboa, agência de fomento a projetos de desenvolvimento local. A conquista foi muito celebrada e permitiu ao grupo dar alguns passos na realização de seu sonho. Entretanto, esse apoio ainda é insuficiente para a subsistência do projeto e sua continuidade. Emocionado, Luisinho confessa: “Se nós estamos aqui até hoje, é por muito amor, entrega e pela dedicação de todos os meninos, que são parceiros de música e resistência“. Até o momento, o projeto não conta com financiamento público ou privado e faltam recursos financeiros para a manutenção do espaço, compra de equipamentos e para apoiar a permanência dos jovens. Outra dificuldade relatada por Luisinho é a resistência de alguns grupos dentro da comunidade. Ao longo dos anos, os batuqueiros colecionam algumas tantas histórias de preconceito cultural, social e religioso.

 

Nada disso, porém, silencia os tambores no gueto. O motivo para tanta persistência? ”Difundir uma cultura que ao longo do tempo vem sendo apagada, perdendo a identidade.  É muito importante resgatar nossos ritmos para trazer a história e a memória dos meninos que vão se perdendo com a cultura de massas, globalizada”, contextualiza Luisinho. O envolvimento dos muitos jovens no projeto são por vezes a abertura para um contato mais íntimo com a cultura dita popular de seus antepassados e além disso, permitem a eles sonhar novas possibilidades de vida, trabalho e futuro dentro da comunidade.

 

E lá seguem eles, para quem quiser ver. É só findar o dia em Serra Grande que ao cair da tarde o batucar de surdos, repiques e dobrados ganham as ruas exaltando ritmos como afoxé, samba reggae, congo, merengue, toques de angola, candombe e samba duro. Durante os cortejos, Luisinho acompanha o grupo caminhando de costas e com os olhos fechados. Na escuridão, vai guiado por sua fé cega na importância de resistir e não recuar diante da encruzilhada. Andando a seu lado vão séculos de tradição afro-brasileira e saravá, cada vez mais jovens que não deixam o samba morrer. Que assim seja. E que à noite, quando os tambores silenciem, seja apenas uma pausa breve para a batucada recomeçar na alvorada que segue, lá no morro da grande Serra.

 

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(Oficina realizada nas ruas de Serra Grande. Foto: Levada da Serra.)

 

A editoria Rapadura sempre traz uma história brasileira inspiradora, com causas ou projetos em cultura que merecem nosso apoio. 

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

_Data de início: 15/03/2016

_Data de encerramento: 15/03/2017

_Observações: O projeto precisa de apoio financeiro para o pagamento de alunos monitores, aluguel do espaço e para a confecção de instrumentos. Além disso,  o projeto hoje precisa de acesso à internet e lanche para os jovens durante os ensaios. Contato para shows e apresentações é uma das demandas atuais do grupo.

Contato:
Levada da Serra: www.facebook.com/levada.daserra.1
Luisinho: (73) 99816-5994 e https://www.facebook.com/aloisio.ferreira.3572
Marcelo (TBC) -  (73) 99931-3779

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