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Canto das Memórias Mestre Zé Negão

 

Parece improvável que numa casinha de chão batido e paredes revestidas de barro funcione um museu. Mas o Canto de Memórias Mestre Zé Negão é isso mesmo: uma morada reconhecida como museu comunitário de história e cultura, rica em brincadeiras, sambadas, cineclubes e oficinas. A noite cai quando chegamos na comunidade de João Paulo II, município de Camaragibe, a 16km do Recife. Esperam por nós, além do Mestre Zé Negão, sua esposa Mestra Fátima, Marcone da Laia e Patrícia Araújo, ambos músicos, amigos, aprendizes do Mestre e colaboradores de iniciativas da casa. Entre instrumentos musicais, tecidos, fotos e diversos objetos artesanais, sentamos para escutar a história deste canto, que se confunde com a própria figura do Mestre Zé Negão.

 

 (Da esquerda para a direita: Mestre Zé Negão, Patrícia e Marcone. Foto de Aline Sales.)


(Da esquerda para a direita: Mestre Zé Negão, Patrícia e Marcone. Foto de Aline Sales.)

 

Percussionista, artesão, educador, ativista, são muitos os papéis que este contador de histórias assume. Sua presença, ao mesmo tempo que inspira força, emana a serenidade de quem é sábio. Uma sabedoria simples, daquelas que não precisa de palavras elaboradas ou gestos vigorosos para convencer o ouvinte. E ali estamos nós, atentas e encantadas, aprendendo a importância de um lugar como este, especialmente num bairro onde a televisão e a igreja exercem tanta influência. É sabido que a grande maioria das manifestações culturais e religiosas de origem negra não é transmitida nos ambientes de ensino convencionais e acabam sendo interpretadas de maneira negativa. Apesar de ativo em diversos projetos da comunidade, o Mestre ainda sofre preconceito. “Escutam os tambores e chamam de macumba”. Zé Negão resiste no presente, salvaguardando as memórias das sambadas, disposto a ensinar e a repassar sua herança a quem se interessar.

 

Mestre Brincante

 

Neto de avós escravizados, Zé Negão nasceu em Goiana, município da Zona da Mata Norte pernambucana no ano de 1950. Lembra da época de menino, quando pulava a janela para ver as brincadeiras de coco e cavalo marinho. “Eu conheci o coco a pulso. A brincadeira só começava às nove da noite, e a essa hora eu tinha que estar dormindo. Então, ia ver escondido do meu pai”, conta. Foi paixão à primeira vista. Virou brincante. Durante sua infância e adolescência, trabalhou como cortador de cana nas usinas açucareiras da região, escutando cantos dos mais velhos na lida. Aos poucos, foi adquirindo mais conhecimento e acumulando histórias sobre os “batuques de mestiço”, maneira como o Coco de Senzala era chamado nos engenhos.

 

(Mestre Zé Negão. Foto de Curò Domenico.)

(Mestre Zé Negão. Foto de Curò Domenico.)

 

A admiração e o gosto pela cultura popular fez com que o mestre se tornasse um agitador cultural – e político. Mesmo trabalhando turnos dobrados em uma fábrica de tecidos Capiberibe e como artesão de ferro, brincava com trabalhadores e estudantes de um jeito, no mínimo, corajoso. “Uma vez, fizemos um cortejo e levamos um jumento que carregava uma faixa com o nome do então presidente: Garrastazu Médici”. Dá pra imaginar como terminou essa brincadeira.

 

Depois de uma cheia, se mudou para Camaragibe, onde constituiu família. Mestra Fátima dava oficinas de bordado, corte e costura para a comunidade, além de atuar à frente de associações e conselhos de moradores. O marido passou a participar de iniciativas com lideranças e escolas locais, o que lhe conferiu respeito e certa visibilidade. O casal já era reconhecido nas redondezas quando construiu em sua casa o ateliê onde confeccionam seus instrumentos e repassam seus saberes.

 

(Mestre Fátima e uma de suas aprendizes, em oficina de corte e costura. Foto de Curò Domenico.)

(Mestre Fátima e uma de suas aprendizes, em oficina de corte e costura. Foto de Curò Domenico.)

 

Por que Coco de Senzala?

 

“Coco de Senzala é o nome dado pelo Mestre para a manifestação iniciada pelos antigos escravos que encontravam na música uma forma de contar suas histórias, de reverberar seus lamentos e de alegrar-se por boas safras e por terem sobrevivido a mais um dia”, explica Patrícia. “Também era um momento em que os trabalhadores se reuniam para pensar em estratégias de como sair daquela situação”, complementa Marcone, que cita Tinhorão (com o livro Música Popular de Índio, Negros e Mestiços, de 1975) como um dos poucos pesquisadores a relatarem a ocorrência de batuques nas senzalas e ruas de Goiana desde os anos 1800. Para Patrícia, é preciso ter cuidado com os academicismos que rondam as diversas manifestações do coco e outras culturas negras. “Só porque não é referenciado na literatura, as pessoas preferem negar que existe. Ao fazer isso, elas contribuem para sua invisibilidade ou até extinção. Nossas referências estão em nossas raízes. Em mestres como Zé Negão e Fátima. Juntas, as pessoas conseguem lutar, aprender, se apropriar, perpetuar culturas e fortalecer suas identidades.”

 

(Sambada da Laia no canto das Memórias Mestre Zé Negão. Foto de Curò Domenico.)

(Sambada da Laia no canto das Memórias Mestre Zé Negão. Foto de Curò Domenico.)

 

Com vontade de falar sobre memórias, mas sempre estando presentes no agora, Patrícia e Marcone atuam no Laia – Laboratório de Intervenção Artística. Em 2004, conheceram as “árvores velhas”, como se referem carinhosamente a Zé Negão, Fátima e Zé Maria, cirandeiro que também mora na cidade. “Quando conheci o Mestre, não consegui não fazer nada em relação a isso. A gente reconheceu nele nosso Mestre”, diz Patrícia. Marcone acrescenta: “Percebi que tinha muito a aprender com ele. Foi um encontro extremamente importante.” A partir de 2006, Mestre Zé Negão passa a fazer parte do grupo onde atua como coordenador de articulação comunitária e é um dos fundadores, junto com Mestre Zé Maria, do acontecimento da Sambada da Laia, ação que reúne mensalmente até 500 brincantes da cultura popular. Desde então, várias sambadas da região se inspiraram neles. Este ano, a sambada completa 10 anos e será realizada em homenagem aos mais velhos que os acompanham, sempre no segundo sábado dos meses de março, maio, junho, julho, agosto e dezembro. No dia 14 de maio será em homenagem a Dona Maria de França, que também é artesã e brincante.

 

As canções são sempre originais e carregadas da história e da vivência do Mestre nas lidas da vida. As letras de poesia improvisada são acompanhadas por ilús, atabaques, djembês, congas, alfaias, pandeiros, berimbau e caxixis numa referência direta à tradição africana. “Tudo o que os outros fazem, não preenche o meu vazio. Faça troncha, faça pequeninha, mas faça a sua”, ensina o Mestre. E engata numa canção, enquanto batuca no tambor em seu colo:

 

“Na frente da casa grande

Tem um tronco de jaqueira

É onde amarrava nego

pra sofrer a via inteira

Eu tenho saudade de um povo

guerreiro e trabalhador.”

 

(Este conteúdo foi produzido com a colaboração de Mariana Brasil.)

 

A editoria Rapadura sempre traz uma história brasileira inspiradora, com causas ou projetos em cultura que merecem nosso apoio. 

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

_Data de início: 12/04/2016

_Data de encerramento: 12/04/2017

_Observações: A visibilidade é uma ótima ajuda. "Contribuir pode significar difundir e se empoderar com suas tradições", afirma Patrícia. "Queremos que as pessoas frequentem o local, compartilhando o seu conhecimento. Convites de outras comunidades e escolas da região também são bem-vindos".

Outra forma de colaboração é através de doação de objetos para o centro: instrumentos musicais, retalhos de tecido, artesanato e livros.

Entre em contato: cantodalaia@gmail.com
Página do facebook: www.facebook.com/oagenezertsem

Comentários

  1. Eu tive a horta de conhecer o mestre zé negão e sua casa 🏠 onde tudo acontece, hoje mon sinto feliz ☺ por ter o conhecido e espero um dia fazer um intercâmbio, pois sou do povo Kapinawá onde tem um grupo de samba de coco e será uma forma de visitar o museu do mestre zé negão e o museu kapinawá. Valeu w muito obrigado por cd este espaço

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