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Retrato Falado 11: Iracy

 

DedodeProsa_RetratoFalado11

 

Retrato Falado: instantâneo em forma de texto

 

Café? Tem não. Só çapó. E é bom aceitar, senão a dona Iracy vai achar que é desfeita. É costume Sateré-Mawé: encontro algum se faz sem que todos bebam do çapó. E tem que beber em número par – dois, quatro, seis goles na cuia –, que é pra absorver toda a sabedoria que aquela água contém: a sabedoria do guaraná. Nas barrancas do Rio Andirá, ninguém é besta de tomar uma decisão importante sem antes deixar que o guaraná, dissolvido na água barrenta que chamam de çapó, molhe a garganta e ilumine as ideias. A cafeína ajuda, mas há também a fé: corre a lenda que todos os Sateré-Mawé descendem de um único pé de guaraná. Planta-mãe, portanto, com tudo de sagrado que isso encerra. Mas çapó também é bebida de todo dia: “a gente toma de manhã e depois do almoço”, conta a dona Iracy. Bom pra acordar o juízo, especialmente nas tardes quentes do Médio Amazonas. Bateu o sono, basta ralar na cuia de água o warana ok, que é o guaraná torrado, pilado e defumado na forma de bastão. Há quem use língua seca de pirarucu, mas dona Iracy prefere pedra rolada de rio. Crianças e velhos, todo o mundo toma. Desde sempre foi assim. Talvez até desde que o primeiro Sateré, de vegetal, tenha se feito gente e ensinado os que vieram depois dele a extrair energia da frutinha vermelha que, quando madura, se abre feito um olho que tudo vê. De tanto tomar çapó, vai ver, os Sateré-Mawé enxergaram longe, pois agora o guaraná da dona Iracy vende até no estrangeiro. Na Europa, botaram guaraná Sateré até na cerveja. Até no chiclete. E isso é importante, pois houve um tempo em que os guaranazais do Andirá estiveram perto de sumir. E o povo minguando junto, se bandeando pra Manaus ou Parintins. Hoje não só tem barco subindo o rio toda semana pra recolher o guaraná como também os netos da dona Iracy estão criando raiz. Para eles, os nãg nia, os anciãos, têm um plano: criar uma universidade Sateré-Mawé, para que o conhecimento do povo seja mantido e transmitido. Por ora já existe curso de licenciatura em parceria com universidade federal e ainda uma biblioteca digital, onde se guardam saberes e mitos numa espécie de çapó virtual. A sabedoria do guaraná, quem diria, chegou à internet.  

 

Iracy Lopes Batista, moradora da aldeia de Guaranatuba, Terra Indígena Andirá-Marau, Amazonas. Novembro de 2012.

 

(Foto por Xavier Bartaburu.)

 

A editoria Dedo de Prosa traz histórias brasileiras inspiradoras, destacando as pessoas e seus ofícios. A seção Retratos Falados é feita por Xavier Bartaburu e traz seu olhar interessado pela beleza e sabedoria de gente simples que ele encontra em suas imersões pelo país. 

 

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