Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Retrato Falado 10: Seu Quim

 

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Retrato Falado: instantâneo em forma de texto

 

Carro bom é carro cantador. Do tipo que avisa o chio de longe, zunindo feito bicho que se anuncia na estrada antes que se veja o pó do seu marchar. É carro que avança em uivo resoluto, compondo cantilena não pra boi dormir, mas pra atiçar sua andadura – e há quem jure que ele gosta. “Quando o carro começa a cantar, o boi joga as orelhas pra trás, pra ouvir a cantiga. Aí puxa mais firme, puxa com gosto”. Quem diz é seu Quim, mestre maior da Mantiqueira, de cuja lavra se viu nascer mais de duas centenas de carros de boi – a cifra é incerta porque ele parou de contar no de número 160. “Desde pequeno eu já fazia carrinho cantador. Carregava o cachorro em cima e puxava”. E lá se vão setenta anos de ofício, principiado aos oito e ainda firme aos 81, mesmo num mundo que trafega em asfalto e de camionete. Freguês é visita rara, mas um ou outro de quando em vez aparece, e é quase  sempre encomenda pra enfeitar quintal – onde o carro fica lá, parado, sem cantar, uma pena –  ou pra desfilar em feira agropecuária – onde às vezes não só canta, como canta em coro, produzindo carreata de chios. Quem quiser, que procure seu Quim na grota onde montou barracão, sítio apartado com riacho no fundo, desses que se acha indagando na vizinhança. Endereço aproximado: bairro da Bocaina, zona rural de São Bento de Sapucaí, onde São Paulo é mais mineiro que paulista (e Minas fica logo ali, detrás do morro). Seu Quim trabalha só, que de ajudante ele não gosta. E é só também que faz o de-fazer, ou seja, as goivas, serrotes, enxós e toda a ferramentaria que o fabrico de um carro de boi exige. Antes ia também no mato buscar a madeira, mas hoje não apenas a idade impede como nem madeira mais no mato tem. Agora as toras vêm de Rondônia. As melhores? Jacarandá, cabreúva e pau-pereira. Boas de cantar, inclusive, porque é no gemido da madeira que se diz se o carro é bom. Pau que não geme não produz eixo de qualidade, nem também bom cocão, peça miúda que prende o eixo ao estrado e bota as rodas pra girar. O vão entre o eixo e o cocão é a “cantadeira”, garganta oculta que dá voz ao carro como se instrumento fosse, ao invés de condução. E é voz própria, que nenhum outro carro tem. Como explica seu Quim, “tem carro que canta mais fino e carro que canta mais grosso”. Sim, tipo gente.
Joaquim Pereira da Costa, construtor de carros de boi em São Bento do Sapucaí, São Paulo. Maio de 2012.

 

(Foto por Valdemir Cunha.)

 

A editoria Dedo de Prosa traz histórias brasileiras inspiradoras, destacando as pessoas e seus ofícios. A seção Retratos Falados é feita por Xavier Bartaburu e traz seu olhar interessado pela beleza e sabedoria de gente simples que ele encontra em suas imersões pelo país. 

 

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