Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Inventário de Encontros: Coleção 01 Pernambuco

 

Inventário de Encontros: uma coleção de prosas pelos Brasis

 

Há poucos dias atrás, arrumei todos os meus bens para uma mudança de endereço. Entre adesivos e caixas, fui apelidada por um amigo de etnógrafa de gavetas e, talvez mesmo pela prática constante de inventariar o que vejo ao meu redor, fui me dando conta que também meu legado não reside na matéria.

 

Meus mais valiosos objetos são, coerentemente, pequenos lembretes de lugares e pessoas. Esses, sim, bens de meus caminhos. O exercício de salvaguardar o imaterial brasileiro me fez sentir que preciso mesmo é enraizar e compartilhar o patrimônio que tenho o privilégio de levar no espaço de minha memória: uma coleção de prosas tão inspiradoras quanto úteis sobre Brasis.

 

Ouvir, deixando-me encantar, sempre pareceu ser o primeiro passo para a empatia. Colocar em palavras o que o tempo perdurou em mim pode ser agora uma nova tentativa, a da sustentabilidade: que outras histórias e vozes se encontrem e que, nessa encruzilhada de narrativas, a gente desenhe um outro nosso mapa.

 

Por isso, começo agora um inventário dos encontros que me acontecem enquanto me desloco pelos territórios com cotidianos tão similares e, na mesma medida, tão diferentes. Vou falar sobre pessoas que também costuram os Brasis e um pouco do que eu venho aprendendo em contato com elas: porque é de encontros que nasce um ponto no mapa.

 

Com propósito, vou escrever sobre encontros não tão recentes: admiro o tempo como limítrofe do que merece resistir, se uma voz ainda ecoa pela pele é porque a memória do corpo avisa que há sabedoria.

 

Meu ponto de partida será o lugar já que acredito que há um grande valor em quem se abre para o deslocamento de perspectivas e para a margem de erro que somente um cabelo ao vento pode provocar: onde havia um cheiro de mato que só brota naquela terra, onde soava um tipo de tambor, onde havia o mesmo rio no quintal, onde o sotaque carregava oralidade, onde o mesmo prato era preparado e compartilhado. Ali, onde aconteceu uma prosa brasileira porque pelo menos duas pessoas se dedicaram a mover os seus corpos e viver todas as dimensões de um cenário cultural.

 

Coleção 01: Pernambuco, onde o coração bate Maracatum tum

 

Pré Carnaval de 2015, meus pais queriam estar no lugar onde há mais Fonsecas neste país e o Iphan tinha acabado de anunciar o registro de Maracatu, de Baque Solto e de Baque Virado, como patrimônio imaterial do Brasil.

 

Como se já não fossem motivos suficientes para eu experimentar outra vez esse estado que tanto me encanta, a Suann aceitou o convite de imergir comigo por lá.

 

O Brasil por Suann Medeiros

 

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(Foto #oBrasilpormim, por Suann Medeiros, durante a nossa imersão a Pernambuco)

 

Eu já conhecia suas fotos, seu sotaque e seu sorriso, mas esses dias juntas foram importantes para que a gente entendesse um pouco do ritmo e do olhar uma da outra: um bom lugar para conhecer um brasileiro é pelas ruas de seu cotidiano (ou de sua infância). Quem celebra a beleza de seu cenário de origem e quem vê inspiração nos caminhos de todo dia é mesmo alguém com atitude de apreciação: resistir no bem-querer é uma prática de afeto sustentável.

 

Suann é assim. Ela vê cores e Brasil e seres brilhantes e Sertão por onde passa. E nos faz a gentileza de registrar e compartilhar: diz que é fotografia, eu acho que é também poesia cultural.

 

E foi ao ouvir seus motivos para catalogar o que via no país, #oBrasilpormim, é que reforcei o sentimento de que Brasis só poderia mesmo ser feito por um Mutirão de gente que está a caminho de se autoconhecer, não só olhando bem, mas também querendo o bem. Porque se é fundamental olharmos a beleza que não nos ensinaram a ver em nossa história, é muito valoroso também que desejemos que esse belo perpetue e que façamos algo para isso.

 

A partir do nosso encontro em seu estado, este Brasis aqui passou a ser feito também por Suann. E lá em Pernambuco, em alguma nuvem no caminho de Recife para Olinda, desenhei um lembrete com a poeira que o tempo não leva: arretado é quem diz sim para a própria história.

 

Mestre Nado

 

(Mestre Nado afina seus instrumentos de barro logo após serem moldados com água, ainda antes de eles irem para o forno.)

(Mestre Nado afina seus instrumentos de barro logo após serem moldados com água, ainda antes de eles irem para o forno.)

 

Estar em Olinda com Suann é como percorrer sua cartografia – visual e sonora – de amigos e folias. Folia de vida, percebam, que todo dia é de celebrar quem somos. Como era pré Carnaval, esbarrávamos em marchinhas que anunciavam que ocupar a rua é coisa de quem vê brincadeira brasileira no cotidiano. A cada passo, ela me contava uma música e me explicava uma festa.

 

E foi ali depois de um ônibus de prosa que chegamos na casa do Mestre Nado. Do portão, a gente já ouvia o som do barro. Mestre porque é patrimônio vivo da cultura, Mestre porque com as mãos constrói e toca instrumentos feitos de barro, Mestre porque da matéria que encontrou nos caminhos desenhou um mundo tal qual a sua imaginação, Mestre porque compartilha o que sabe.

 

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(Instrumentos de barro do Mestre Nado.)

 

Mestre Nado é um desses brasileiros que nos fazem repensar o significado da palavra sabedoria: o que ele conhece não há ainda universidade que ensine. E estar perto de pessoas assim é pra mim reafirmar a ideia de que precisamos descentralizar o nosso conhecimento e valorizar também as pessoas que fazem de nossa cultura tão especial quanto ela é: casa, ruas e museus podem ter acervos igualmente preciosos!, um curador será mais importante que um fazedor?, por que a nossa educação insiste em nos contar as mesmas histórias e com os mesmos heróis?, os sotaques e oralidades são linguagens que precisamos conhecer, utilizar e enaltecer…

 

E o Mestre Nado é uma dessas pessoas que contam a vida por compassos de sua região, ele conhece e valoriza as melodias de outros mestres e replica baião, Maracatu, serestas. Sons que saem de seus instrumentos mágicos de barro: água, terra, fogo e o sopro do ar.

 

Como tantos fazeres de mestres das culturas brasileiras, o trabalho de Nado mostra que simplicidade e elegância são sinônimos de essência. Não é tão importante inovar, é na história que mora o potencial criativo.

 

(Sara e seu pai, Mestre Nado, tocando juntos em sua oficina em Olinda.)

(Sara e seu pai, Mestre Nado, tocando juntos em sua oficina em Olinda.)

 

Sara é o nome de outra Mestra que conheci ali. Filha de Nado, é ela quem hoje constrói e toca boa parte dos instrumentos, organiza os trabalhos do pai e as viagens em grupo. Pelas mãos de Mestra Sara, o saber do barro perpetua. Cuidadora, salvaguardadora, construtora de instrumentos e música: uma das tantas mulheres brasileiras que ainda não aparecem nos livros de cultura. Ainda.

 

Precisamos resgatar a história e salvaguardar o legado das mulheres na cultura brasileira!, grifei em meu caderno de imersões. Poucas foram as mulheres com oportunidade para se deslocar pelo país, o que significa que poucas mulheres tiveram a sua história registrada já que os homens em imersão tinha mais interlocução com os homens locais. Quantos saberes e reflexões femininas ainda faltam para costurarmos as nossas histórias?

 

Híbridos

 

A viagem reforçava em mim a primeira linguagem que me aproximou da cultura brasileira: a música. Criança no Norte de Minas Gerais, com a oportunidade de estudar nos centros públicos de educação regional (dança, música, artesanato, artes) que lá existem, foi no Conservatório de Música e participando das apresentações do grupo de dança Banzé que eu comecei, ainda sem saber, a me encantar pelo universo criativo brasileiro. A música brasileira permaneceu na minha vida como o idioma que é mais natural pra mim e, principalmente, como o que rege os meus dias.

 

De Olinda voltamos a Recife e começamos o contato com as Nações de Maracatu. Falamos com os principais pesquisadores do Iphan sobre o Maracatu, visitamos os barracões de Baque Virado, estivemos no galpão do fundamental Maracatu Piaba de Ouro: foi lá e na Casa da Rabeca que Mestre Salustiano começou o trabalho de reconhecimento do cortejo. Em uma daquelas noites, fomos convidadas para assistir, no Recife Antigo, o ensaio das Nações com o Mestre Naná Vasconcelos.

 

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Essa é uma das noites pelos Brasis que guardo com mais carinho: lembro-me que chorei quietinha ao ouvir pela primeira vez duas Nações tocando a canção-aula de Luiz Gonzaga que explica o que é o Maracatu, lembro-me que decidi naquele momento que ia aprender a tocar Agbê (e me emociono agora de novo ao perceber que continuo este texto exatamente após voltar de um ensaio do Maracatu onde comecei a tocar em São Paulo). Algo naquela noite me fazia pensar que eu experimentava uma mágica indescritível, talvez fosse a memória da menina norte-mineira em suas aulas de música.

 

Olhei para o lado e reconheci um rosto: além de Suann e eu, documentavam a noite os amáveis Vincent Moon e Priscila Telmon, diretores do Híbridos: um projeto transmídia que pretende compartilhar a experiência do sagrado no Brasil, destacando a nossa música em rituais de fé.

 

Um elo muito forte surge quando há um encontro em meio a uma celebração da cultura brasileira: a própria presença em um evento específico e pouco turístico revela um interesse e um investimento genuíno no Brasil. Costumo reforçar sempre que viajar tanto pelo país é extremamente prazeroso, mas também significa um ciclo grande de renúncias pessoais: uma delas é que poucas ainda são as pessoas vão compreender a emoção vivida nesses momentos ou o tamanho dessa experiência para um coração encantado pelo Brasil. Talvez por isso, reconhecer um rosto nessas situações é tão aliviante: significa companhia para os dias, cumplicidade em uma trajetória reveladora e certamente o início de uma amizade.

 

Foi assim com Vincent e Priscilla, naquela noite começamos uma parceria que se estendeu pela Zona da Mata Pernambucana, berço do Maracatu Rural, passando pelo Rio de Janeiro e por São Paulo. Certamente, Brasil adentro.

 

(Vincent Moon, Priscilla Telmon e Fernanda Abreu: equipe do projeto Híbridos em Nazaré da Mata - PE.)

(Vincent Moon, Priscilla Telmon e Fernanda Abreu: equipe do projeto Híbridos em Nazaré da Mata – PE.)

 

Aprendo muito com eles e sua visão de documentário. Meu jeito de fazer política é fazendo poética, respondeu Vincent a uma pergunta da plateia em uma fala sua que mediei em São Paulo. Com Híbridos, queremos que as pessoas cheguem o mais perto possível de viver a experiência do sagrado brasileiro, não queremos explicar a mágica, queremos compartilhar a mágica, contou Priscilla noites depois em Nazaré da Mata e abriu meus olhos sobre a importância da etnografia artística.

 

A gente acredita que os sincretismos brasileiros podem apresentar muitas respostas para os atuais dilemas do mundo. É sobre acreditar, e o que leva as pessoas a fazer música se não a sua vontade de expressar algo que acreditam?, eles me diziam.

 

Naquela noite de Zona da Mata pernambucana, guardava em meus pensamentos: dançar Brasis é um jeito de entender Brasil.

 

Mestre Anderson

 

E no terreiro da Cambinda Brasileira, a mais antiga nação de Maracatu de Baque Solto, Híbridos e Brasis aprendiam como nasce e, principalmente, como permanece uma tradição brasileira.

 

(Mestre Anderson e maracatuzeiros no terreiro da Cambinda Brasileira em Nazaré da Mata - PE.)

(Mestre Anderson e maracatuzeiros no terreiro da Cambinda Brasileira em Nazaré da Mata – PE.)

 

Uma Nação de Maracatu em cortejo é formada por até 300 pessoas que se deslocam de ônibus para expressar suas crenças e celebrar a sua história. Muitas vezes as apresentações não são remuneradas e um Mestre de Sambada que leva a toada de todo o grupo, como Anderson, precisa estudar muito para conseguir fazer as rimas e letras com encanto.

 

Cambinda é Nação, eles nos contava ao explicar o que é Maracatu. E deixava claro que falar sobre fazer a festa é falar sobre família, sobre resistência, sobre acreditar em sua história e região, sobre participar.

 

Na noite de ensaio, a imagem dos caboclos de lança chegando vestidos de seus instrumentos é algo que faço questão de preservar na memória: seres fantásticos e encantadores são os brincantes brasileiros em meio às festas. Se de dia grande parte deles trabalham na roça ou na prestação de serviços locais, durante as celebrações eles se transformam em poderosos e belíssimos defensores de uma Nação de Maracatu. Enquanto dançavam e cantavam por horas, eu entendia que as festas brasileiras são uma oportunidade para ocuparmos papéis mágicos e fundamentais para a descentralização de nossa sociedade.

 

Anderson, passava de menino a Mestre toda vez que sua voz repetia um grito de sua cultura. No seu timbre, as histórias de seus conterrâneos conseguiam eco em meio à noite do interior de pernambuco. Seu semblante refletia o sorriso de seus parentes e parecia que seu coração era um dos instrumentos mais bem afinados que já tinha conhecido.

 

Maracatum Tum

 

Essa é a melodia que tocava durante essa imersão. Que ainda me toca e me leva pela mão, que me fez tocar Agbê e colocar mais panos nas rodas de minhas saias.

 

Nessa toada, esses foram dias de aprender sobre os valores de adentrar em um cenário cultural para além do ambiente digital: todos os patrimônios de um contexto são importantes para um aprendizado.  

 

Estar pelos Brasis é sempre um exercício de autoconhecimento para um brasileiro. É um exercício de olhar para um Brasil que a gente não vê. Uma atitude de não somente se colocar no lugar do outro, mas de estar com o outro em seu lugar.

 

Nessa medida, estar pelos Brasis é colocar em prática um olhar sustentável e afetivo para os nossos recursos e é também costurar um repertório criativo e aplicável em buscas de soluções estéticas, econômicas, espirituais e éticas para os nossos dilemas atuais.

 

(Fotos por Suann Medeiros.)

 

A editoria Dedo de Prosa traz histórias brasileiras inspiradoras, destacando as pessoas e seus ofícios. A seção Inventário de Encontros é feita por Mayra Fonseca e traz uma coleção de suas prosas em diferentes viagens pelos Brasis.

 

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