Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Povo Guarani em Paraty

 

(A autoria é do colaborador Gustavo Cerqueira).

 

“Apy tekoapy oreayvu oreayvu py a’e avy’a nhandereko imbarete ramo”.

 

Entre silêncios, Karai Nhendua aos poucos busca o melhor caminho para transitar entre duas culturas, duas línguas. Apesar de dominar o idioma do juruá – o homem branco – é necessário cuidado. Muitas palavras, tão comuns a nós, simplesmente não existem em sua língua materna. Por fim, como um mestre que desperta, me olha decidido e revela com voz suave: “Na nossa aldeia a gente fala em nossa língua. Fico feliz que a nossa cultura está forte.”

 

A cultura a que Nhendua se refere é a Guarani-Mbya. Na contramão das globalizações, o modo de ser Guarani resiste e se faz cotidiano no estado do Rio de Janeiro em três aldeias, demarcadas desde o ano de 1996: a Terra Indígena Bracuí, em Angra dos Reis, e as Terras Indígenas Araponga e Parati-Mirim, localizadas no município de Paraty.

 

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(Aldeia Itaxῖ. Foto de Gustavo Cerqueira.)

 

Meu encontro com Nhendua acontece na aldeia Itaxῖ, ou Pedra Branca. A aldeia está às margens da estrada de Parati-Mirim, a 15 quilômetros e muitos contextos do famoso centro histórico de Paraty. Atualmente, moram por lá cerca de 180 pessoas, distribuídas em 42 famílias. Mas nem sempre foi assim.

 

Morador mais velho e cacique da tribo, Karaei Tatati nasceu na cidade, em Foz do Iguaçu, Paraná. Quando jovem, conta que ainda chegou a trabalhar e fazer alguns bicos. Somente ao completar 23 anos que decidiu abandonar a cidade erguida por europeus e seguir em busca de seu próprio fado. Partiu com a família rumo à terra prometida, em busca de seus antepassados. Migrantes por natureza, os guarani perseguem o sonho de seu mito originário: chegar um dia ao paraíso prometido, a terra sem mal. No caso de Karaei, sua peregrinação o levou primeiro ao Espírito Santo, onde morou por anos até ter notícias do avô, que morava com a esposa e o filho em uma região até então selvagem, nas encostas da Serra do Mar. Nascia assim a aldeia Itaxῖ.

 

Povo de agricultores, a terra é assunto sério para os Guarani. Nela semeiam plantações, cultivam suas roças com milho, mandioca e feijão e encontram os materiais para construir as casas feitas de pau-a-pique, técnica que consiste em entrelaçar pedaços de bambu e cipós, preenchendo-os com barro na sequência. É justamente o território, tão precioso a seus costumes que aparece como uma das preocupações atuais da comunidade. Uma possibilidade de ampliação está sendo estudada pela FUNAI, porém hoje a área demarcada é pequena e coberta por pedras e morros, dificultando plantações e o pleno uso de seus recursos. Isso fez com que muitos aderissem às construções em madeira e alvenaria, comprando materiais na cidade.

 

Também de alvenaria são o posto de saúde e a escola estadual, que atende ao primeiro ciclo do ensino fundamental em guarani, também com o ensino da língua portuguesa. Há pouco tempo, teve início uma turma de sexto ano, porém esta acontece só em português, por falta de professores habilitados na aldeia. “Nossa luta atual é para que o estado ofereça o magistério indígena, para que assim a gente possa continuar o ensino das crianças”, relata Kerexu, presidente da ACIGUA (Associação Comunitária Indígena Guarani).

 

Além da escola, outro espaço que ocupa lugar de destaque na tradição popular é a Casa de Reza. É nela que acontecem os batizados de pessoas, ervas medicinais e alimentos. Os batizados são uma forma de agradecer e solicitar à mãe-terra que ela continue ofertando mais. “Cada um leva algo para oferecer e, no coletivo, todos fazem seus pedidos para a natureza”, explica Karai.

 

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(Karai Nhendua. Foto de Gustavo Cerqueira.)

 

Ao falar sobre os batizados, ele termina por me confidenciar o significado de seu nome. Karai quer dizer aquele que tem sabedoria, que sabe dar conselhos. Nhendua é aquele que faz barulho, por ver as coisas e ter algo a dizer. “Nós só recebemos nosso nome de batismo depois de um tempo de vida. Ele é revelado pelo pajé, a partir de nossas características. Já o nome de branco a gente escolhe depois, algum que goste”, esclarece. A despeito do batismo de pura poesia, em nosso primeiro encontro não foi Nhendua quem conheci, mas sim Ronaldo. Hábito adquirido com os muitos anos de convivência desigual com a cultura branca e suas imposições.

 

O último espaço que conheço em minha passagem pela aldeia é o pequeno centro de artesanato estrategicamente posicionado na entrada da aldeia. O artesanato é a principal fonte de renda e é vendido também nas ruas do centro histórico. As mulheres trabalham as fibras da taquara no preparo de cestas, arcos, flechas e zarabatanas. Já os homens se dedicam à talha de animais em madeiras. Rosalinda me apresenta suas peças e conta: “Aqui a gente não encontra nenhuma das fibras que usa para fazer as peças. Tudo que a gente pega é na aldeia Bracuí em Angra, então é bem trabalhoso”. E não é só isso que torna difícil a sobrevivência financeira. A falta de um espaço para exposição e comercialização das peças no centro é outra dificuldade enfrentada.

 

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(Rosalinda no centro de artesanato. Foto de Gustavo Cerqueira.)

 

Saio do centro e fico alguns minutos a observar a vida que pulsa ao redor. A verdade é que o tempo desfila vagaroso em Itaxῖ. Crianças correm na entrada da aldeia e brincam em escorregadores improvisados. Duas mulheres, sentadas à frente da casa observam o movimento das árvores com o semblante leve, despreocupado. Vez ou outra um carro levanta uma novem de poeira, batendo terra logo à frente. Com a proximidade da estrada e do juruá, não há dúvida que os Guarani combinaram muitos elementos da cultura do homem branco à sua. Mas algumas tradições encontram na teimosia seu jeito único de resistir às intempéries. Ainda há tempo para se reunir na sombra da árvore e também eu me permito ficar ali por um tempo, à deriva. Embarco em uma prosa com o cacique Karaei e ele me conta das muitas plantas medicinais que tem por ali e de seus diferentes efeitos curativos. Ao final, me mostra seu cachimbo e segreda: “Quando nada mais funciona, é hora de acender o cachimbo. Já vi muita gente se salvar assim quando nenhum remédio ajudava”.

 

Alguém o chama em casa e fico só por um momento. Entregue a meus devaneios, penso em como é difícil para tantos nós – seres urbanos – entender, aprender e até mesmo respeitar esses jeitos tão diferentes de conviver com os outros e com a vida em volta. Para a cidade e para a ciência esse conhecimento que nasce da escuta e do convívio cotidiano com a terra carrega uma dose de lirismo, utopia, misticismo. Mas logo Karaei retorna e interrompo minhas meditações. Ele vem sozinho ao meu encontro, passos curtos e precisos. Apanha sem pestanejar uma cadeira que vê pelo caminho, a coloca debaixo do braço e senta-se à minha frente. Na sequencia, da uma baforada em seu cachimbo, com um sorriso largo no rosto. Até aí, nada fora do comum. Não fosse o fato de que Karaei completa 116 anos em alguns meses.

 

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(O cacique Karai, 116 anos, com seu cachimbo. Foto de Gustavo Cerqueira.)

 

Misticismo talvez. Mas talvez haja também uma grande possibilidade de desenvolvimento e aprendizado se nos deixarmos inspirar nas culturas vivas de nosso país continente e em sua experiência com a terra, com a natureza e com a vida.

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

_Data de início: 07/10/2015

_Data de encerramento: 31/07/2016

_Observações: As principais demandas atuais são um espaço para venda de artesanato no centro histórico de Paraty, espaço físico para sede da associação comunitária, veículo para associação, mudas e apoio para o manejo de fibras, assessoria técnica e jurídica. (24) 99989-7882, falar com Ronaldo (Karai) ou Ivanilde (Kerexu).

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