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Jarid: negra e cordelista

 

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“Na favela Canindé

Sua vida foi sofrida

A maior luta diária

Era a busca por comida

Era vida esfomeada

Sempre muito deprimida.

Carolina ainda tinha

Três filhos para cuidar

Todos de pai diferente

Ela nunca quis casar

Pois queria a liberdade

Pra fazer seu desejar.

 

O que mais ela gostava

Era ler, era escrever

Sendo maior passatempo

E registro do viver

Nas palavras mergulhava

Para assim sobreviver.”

 

(Trecho do cordel Carolina Maria de Jesus, de Jarid Arraes)

 

Desde o início de 2015, a cearense Jarid Arraes, nascida e criada em Juazeiro do Norte, vive no bairro de Perdizes, em São Paulo. Apesar de ainda estar se adaptando à grande selva de pedras, ela não é mulher de negar um desafio. E como cabe luta nessa estrada, cheia de apetite para poesia! Com apenas 24 anos, Jarid é graduanda de psicologia, escritora, jornalista, feminista e cordelista. De boca pintada, faixa colorida no cabelo e sorriso no rosto, ela me recebeu em seu apartamento, no fim de uma tarde de sábado.

 

A literatura de cordel vem de berço: o gosto e o talento ela puxou do pai e do avô. Embora tenha crescido nesse universo, já chegou a pensar que não levaria jeito pra coisa. “Cordel é difícil, tem que construir toda a história com começo, meio e fim – dentro da métrica.” O pai ofereceu ajuda, propondo que a filha copiasse um cordel seu, até pegar a prática. Mas nem precisou. Quando Jarid começou a escrever, a narrativa fluiu, a rima saiu, tudo com naturalidade. Surgia “Dora, a negra e feminista”, seu primeiro cordel.

 

O cordel engajado (esse, que aborda questões históricas, políticas e sociais) sempre esteve presente na família. O primeiro que a então futura escritora leu foi de seu pai, Hamurabi Batista, na época da comemoração dos 500 anos do “descobrimento” do  Brasil. “Ele tava puto!”, relembra, rindo. “Eu era bem pequena, tinha um monte de palavrão, e meu pai falava da invasão, da escravidão.” A sementinha estava plantada.

 

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Para a autora, o seu fazer é, além de paixão, quase uma missão. São duas as principais motivações que a fazem escrever. A primeira é o medo de o cordel morrer. “Cordel é uma coisa muito marginalizada. Pra começar, quem se interessa por cultura nordestina é um público muito específico. Cordel não é considerado literatura. Nunca convidaram um cordelista para a Flip, por exemplo”. Aliado a isso, a geração de Jarid não é grande fã do gênero. Eis a importância de seguir com a tradição da família, como mulher forte do Cariri encantada com sua cultura.

 

O segundo estímulo tem raízes na vontade imensa de que questões raciais e de gênero sejam mais discutidas, além de fazer com que mulheres negras importantíssimas para a História do Brasil sejam mais (re)conhecidas. Foi pensando nisso que ela criou os cordéis biográficos. Cordel feito por uma mulher e sobre mulheres do Brasil. Embora não seja inédito, o feito ainda é raro dentro desse universo.

 

“Faço humilde reverência

E saúdo a sua história

Agradeço pela luta

Que me foi dedicatória

Ao racista esquecimento

Faço uma denegatória.

Mulher negra de coragem

E também de inteligência

Com talento e liderança

Com imensa sapiência

Foi Tereza de Benguela

Fonte de resiliência.”

 

(Trecho do cordel Tereza de Benguela, de Jarid Arraes)

 

Se a literatura de cordel já é pouco difundida, uma mulher negra, nordestina e periférica, então, é quase invisível. Jarid conta que uma das primeiras cordelistas do Brasil teve que convencer o marido a assumir a autoria de suas obras, ou não as vendiam nos cordões. Ainda hoje há vestígios do machismo no meio. “Nos eventos onde vão meu pai e meu avô, não tem mulheres. Apesar de existirem muitas mulheres cordelistas Brasil afora.” Uma delas, referência para a escritora, é Salete Maria, professora do Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que já soma 20 anos de trajetória e prêmios acumulados.

 

Ao perceber que não aprendemos quase nada sobre mulheres negras e histórias de resistência à escravidão na escola, Jarid se viu “na obrigação” de difundir isso. Segundo ela, saber que tais mulheres existiram e foram tão relevantes para o país foi muito libertador e empoderador. “Não vemos seus nomes na mídia, até mesmo dentro dos movimentos sociais essas mulheres são esquecidas. Por quê?” A lista começa com Dandara dos Palmares, companheira de Zumbi. Também tem Tereza de Benguela, líder quilombola do quilombo de Quariterê. A elas, se somam Luísa Mahin (mãe do poeta Luís Gama e grande liderança na luta contra a escravidão no Brasil), Tia Simoa (guerreira resistente à escravidão que inspirou o Grupo de Mulheres Negras do Cariri, o Pretas Simoa), a princesa africana Aqualtune que se tornou ícone no Brasil e, finalmente, Carolina Maria de Jesus, com quem Jarid mais se identifica por ser uma escritora vinda da favela do Canindé. Todas elas viraram cordel.

 

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(Foto Jarid Arraes.)

 

A voz que se traduz em produção

 

Papel reciclado, uma guilhotina, uma impressora, um grampeador. Não precisa muito mais para se produzir um cordel que Jarid vende a R$2,00 através de seu site pessoal. A escrita e a edição são feitas no computador; as ilustrações da capa são xilogravuras do seu pai ou desenhos seus. Assim, feitas em casa, suas obras ganham vida. Os pedidos podem chegar a centenas. O artigo “Heroínas negras na História do Brasil”, que escreveu para a Revista Fórum em Abril deste ano e no qual cita rapidamente seus cordéis biográficos, foi compartilhado 76 mil vezes até a publicação deste texto e rendeu cerca de 500 emails.

 

O próximo passo é fazer uma lojinha online, que deve ficar pronta em Junho, para dar conta da procura. A escritora ainda faz parcerias com livrarias independentes, ONGs, coletivos e instituições. Além de levar cópias a eventos dos quais participa como palestrante ou debatedora, Jarid também faz doação para bibliotecas e ministras oficinas.

 

É claro que a produção de cordel não tem como objetivo ganhar dinheiro. “Eu apenas cubro meus custos”, esclarece. O que lhe enche mesmo de orgulho é o interesse de professores de literatura.”Quando professores usam meus cordéis não só para estudar a História do Brasil, mas também para ensinar poesia e métrica, aí é meu auge”, declara. “É muito bom saber que a gente contribui para a escola ser esse lugar que gera uma reflexão importante, preparando as pessoas para a vida.”

 

(Fotos por Carolina de Marchi e Jarid Arraes.)

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

_Data de início: 20/06/2015

_Data de encerramento: 31/12/2015

_Observações: Para colaborar, divulgação é o mais importante. A ideia é espalhar! Jarid quer tornar as temáticas acessíveis e popularizar a literatura de cordel. Quem quiser comprar também ajuda, claro. Recomendar para escolas e indicar para oficinas são ótimas maneiras de colaborar com os objetivos da autora.

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