Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Tramas de memórias mineiras

 

(A autoria é do colaborador Gustavo Cerqueira).

 

Tão logo se cruza a soleira da porta, já é possível perceber o som áspero da roca de fiar, em seu movimento incansável. É o primeiro anúncio de uma prática tradicional que acompanha as mulheres do Vale do Jequitinhonha há gerações: a tecelagem.

 

Palco da exploração contínua de minérios e pedras preciosas no passado, o curso do tempo exigiu que as comunidades diversificassem suas atividades, passando a investir na agricultura e no artesanato. Com os homens fora de casa, trabalhando na pesada rotina dos canaviais de São Paulo, as mulheres passaram a assumir a casa, a roça, e encontraram na produção artesanal uma criativa forma de expressão e geração de renda.

 

Às margens do rio Araçuaí, com cerca de 12 mil habitantes, Berilo é o berço da Trama Mineira, técnica de tecelagem que alia complexidade e sofisticação impressionantes. “Além de nós aqui, ninguém sabe fazer. Já teve quem tentasse copiar nossos produtos ou nosso jeito de fazer, mas posso te dizer: nunca fica igual”, conta orgulhosa a artesã Natalina Soares. Com um sorriso no rosto, ela me recebe em sua casa e me apresenta seu espaço de trabalho, nos fundos da casa. São fios de algodão de todas as cores, instrumentos variados e equipamentos rústicos como a roca e um imenso tear de madeira, que para ser operado exige destreza, paciência e um tanto de força física.

 

Rapadura_Trama_Conteúdo_01

(Natalina Soares. Foto de Gustavo Cerqueira)

 

Aos poucos, Natalina me ensina todas as etapas da produção. E elas não são poucas. Antes de chegar ao tear, o algodão precisa ser colhido, desenredado, fiado manualmente e tingido, normalmente com elementos naturais, como o angico e o jenipapo. Os desenhos são realizados em alto relevo, a partir da sobreposição dos fios durante o tecer. Formas geométricas e figurativas vão surgindo como que naturalmente, à medida que os fios são trançados em um trabalho de confecção que impressiona pela precisão. Os desenhos escolhidos dão pistas do cotidiano local e expressam o imaginário popular. O resultado, como não poderia deixar de ser, é singular.

 

Rapadura_Tramas_Conteúdo_02

(Passadeira no tear de Natalina. Foto de Gustavo Cerqueira)

 

Deixo para trás a casa de Natalina com uma certeza: a trama mineira é muito mais do que uma trama de fios. Ela é, sim, um emaranhado de lembranças, histórias, afetos e amores que um  grupo de valentes mulheres teima em não deixar morrer. No final da década de 70, a chegada da CODEVALE – Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha – foi uma das grandes responsáveis por estimular o artesanato na região. O órgão passou a comprar peças em grande quantidade e a levar para os grandes centros urbanos, onde elas eram revendidas. Seu término fez com que as vendas ficassem restritas a algumas poucas feiras nacionais de artesanato. Atualmente, com a falta de incentivo e interesse do poder público, mesmo a participação nas feiras tem se tornado cada vez mais difícil.

 

Sem recursos e apoio, a luta dessas guardiãs da cultura popular ganha força em torno de um sonho comum: o de que seu conhecimento, transmitido oralmente em suas famílias por gerações não se perca.  “Aprendi tudo com minha mãe, vendo ela dia e noite no tear. Se a gente fizesse isso por dinheiro, já tinha parado faz tempo. Continuo aqui porque isso é o que eu sei fazer, é a nossa história. E sem ajuda, isso vai se perder”, lamenta Alaíde Costa. Conheci Alaíde em visita ao galpão da cooperativa na comunidade rural de Roça Grande no dia seguinte, ao lado de Eni Batista, tecendo uma rede a quatro mãos. Com olhar firme e voz grave, é Alaíde quem vai desfiando a história do grupo. Além das dificuldades de comercializar as peças, outra dificuldade surgiu no passado recente do grupo. “Nós estamos praticamente sem algodão. Quem tem é porque tem guardado. Há muito tempo que o algodão que chega é caro e difícil de encontrar. Hoje, ninguém mais tem, nem para vender”, esclarece Eni.

 

Rapadura_Tramas_Conteúdo_03

(Eni e Alaíde no galpão da cooperativa em Roça Grande. Foto de Gustavo Cerqueira)

 

Nos dias atuais, é a persistência e a criatividade de apenas 14 mulheres que mantém viva a cooperativa e a produção artesanal. A grande maioria vive nos bairros rurais de Berilo, muitos deles reconhecidos enquanto comunidades remanescentes de quilombos, espaços de vida e resistência. Das artesãs, muitas faleceram ou então deixaram o ofício por limitações físicas que vieram com a idade avançada. “Moço, faz pouco tempo eu me dei conta de algo que que me deixou bem preocupado. Todas as nossas artesãs estão envelhecendo e nenhuma delas tem menos de 30 anos”, conta Alessandro Borges, liderança comunitária e agente cultural. Alessandro é um dos principais representantes do congado na região e o maior apoiador e parceiro das artesãs. Sua preocupação é legítima: a falta de incentivo faz com que as mais jovens busquem outras alternativas e coloca em risco a própria sobrevivência da tradição cultural na região.

 

Enquanto escuto, percebo que, na falta do algodão, outro fio enreda todas essas mulheres: o amor. Amor pelo artesanato, pelo ofício, pela convivência na cooperativa, pela prática, pela memória. Amor que faz com que, em um ato de solene resistência, quase todos os dias elas saiam de casa e se encontrem no galpão da cooperativa, para tecer a muitas mãos sua luta por existência e reconhecimento. Sem qualquer promessa de retorno.  “Isso aqui é minha vida, se eu pudesse viveria só de artesanato.”, desabafa Alaíde.

 

Antes de deixar Berilo, vou conhecer Dona Pretinha na comunidade da Barra do Ribeirão, uma das mais antigas mestras no ofício. Sentada à roca de fiar, com seus 75 anos, ela entoa com sua voz rouca cantigas do passado e do presente. Ao mesmo tempo, seus pés marcam o tempo, acompanhando a melodia e ditando o ritmo com que o algodão vai sendo fiado. A impressão é a de que mesmo a natureza ao redor silencia, em ato de respeito à sábia anciã.

 

Rapadura_Tramas_Conteúdo_04

(Dona Pretinha e sua roca de fiar. Foto: Gustavo Cerqueira)

 

É difícil encontrar palavras para descrever a honra e a beleza de ter mergulhado nessa jornada e compartilhado ao lado das artesãs muitas risadas, histórias e anseios. Estive na casa de artesãs, mestras de ofício, conheci a pequena casa de artesanato na cidade e a cooperativa instalada em um galpão na zona rural. Na companhia permanente da famosa hospitalidade mineira, fui sempre recebido com um largo sorriso, uma fatia de requeijão caseiro, biscoitos de polvilho e o café doce, sempre à mesa.

 

Antes de partir, abraço forte Dona Pretinha, sinto os olhos marejarem pela terceira (quarta?) vez e subitamente me dou conta do verdadeiro espetáculo que ali presenciei. Enquanto tecem colchas, redes, passadeiras e tapetes, essas artesãs vão fiando suas próprias vidas em um ato silencioso pela manutenção de um conjunto de saberes e fazeres que constrói a identidade desse grupo de mulheres, que com tão pouco e apesar de todas as intempéries, permanecem à frente de seus teares, aguerridas, otimistas. Nessa trama de memórias, se entrelaçam os cotidianos, sonhos, afetos e conhecimentos. E enquanto isso, elas seguem, à espera de um novo fio. Nem que seja, dessa vez, um fio de esperança.

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

_Data de início: 02/09/2015

_Data de encerramento: 31/12/2016

_Observações: As principais demandas são apoio financeiro para a produção, obtenção da matéria-prima (algodão), apoio logístico para participação em feiras e eventos, contato com lojistas e revendedores. Contatos: Alessandro Borges (33) 8856-3150 e Natalina Soares (33) 8852-3520.

Comentários

  1. Parísina Ribeiro disse:

    Parabens pela materia, amei

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>