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Maracatu Coração Nazareno

 

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(Foto: divulgação/AMUNAM)

 

Este texto começa com um convite, antes de mais nada: vá ali no Bê-a-Bá de Brasis e dê uma boa mergulhada no Maracatu. Foi? Então você já entendeu que maracatu é resistência, é bordado, é improviso, é brincadeira, é brilho e balanço. Você também entendeu que é manifestação cultural e motivo de muito orgulho e admiração.

 

O que muita gente não sabe é que, originalmente, essa linda tradicão centanária era uma brincadeira restrita aos homens. Na crença popular, a mulher era negativa para o Maracatu e supostamente trazia azar, pelo fato de menstruar. Não era diferente em Nazaré da Mata, interior de Pernambuco, berço do Maracatu Rural, também conhecido como Maracatu de Baque Solto. Os homens que brincavam de caboclo de lança, que são os guardiões do Maracatu, não podiam nem sequer dormir com mulheres nas oito noites anteriores a uma apresentação, pois seriam “enfraquecidos”.

 

Foi apenas na década de 60 é que certo espaço foi aberto àquelas que quisessem participar, aos poucos. “Só se podia brincar de baiana, depois, de rainha. Mas ainda não eram papéis protagonistas, como caboclo de lança ou mestre”, explica Eliane Rodrigues, fundadora do Coração Nazareno Maracatu 100% Feminino, o primeiro com essas características no Brasil. A voz decidida, um pouco rouca (se recuperava de uma virose, quando conversamos ao telefone), revelava uma mulher que sabia muito bem do que estava falando. Essa força delicada, pelo visto, sempre esteve lá. Nascida na Zona Rural do município de Nazaré da Mata, Eliane é de família grande e predominantemente feminina. São seis irmãs e um irmão.

 

Além de estudar, aos 16 anos ela teve seu primeiro emprego de carteira assinada, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Não demorou muito para o traço batalhador enveredar para as causas das mulheres da região. Em meados dos ano 80, Eliane iniciou um trabalho de empoderamento de mulheres no sindicato. Em 1988 fundou a AMUNAM, Associação das Mulheres de Nazaré da Mata, com 19 membros. “A gente desenvolve ações sociais, de educação e cidadania com adolescentes, crianças, adultas e idosas da região da Mata do Norte de Pernambuco”, explica a fundadora.

 

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(Foto: divulgação/AMUNAM)

 

O Maracatu é Nazareno e feminino

 

Como Eliane é arretada e não sossega facilmente, o próximo desafio foi lançado. Desafio esse inventado por ela, para si mesma. Aliás, para si mesma não, para todos de Nazaré da Mata. “Eu sempre fui muito ousada. Aí eu disse, lá na rádio comunitária: vamos fundar um maracatu que seja só de mulheres para mostrar que queremos sair da cozinha e ir para a sala. Mostrar que a gente pode também!” Pronto. No dia 8 de março de 2004 (de maneira emblemática, no Dia Internacional da Mulher), nascia o Coração Nazareno, o único grupo de Maracatu de Baque Solto formado exclusivamente por mulheres. Na época, eram 35 integrantes. Hoje, já são 75, entre 8 e 85 anos de idade. Algumas delas são atendidas na associação; outras são funcionárias, coordenadoras e professoras das oficinas que acabaram sendo arrebatadas pelo encanto do Coração.

 

A AMUNAM é o QG do grupo. Lá, elas tem a infra-estrutura e recursos para realizar oficinas de costura, ensaiar, fazer refeições, se preparar para as viagens e apresentações. Tudo é feito por elas: do corte da gola do cabloco de lança à música. “Sabe que quando você faz uma coisa para si mesmo, é feito com mais carinho, amor e cuidado, né? Então nossas indumentárias são mais bonitas, bem bordadas, no capricho. A gente também estuda sobre a música”. E põe capricho nisso. O Coração Nazareno não fica para trás no quesito beleza do cortejo, ritmo da música ou criatividade se comparado a qualquer outro grupo tradicional de maracatu.

 

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(Foto: divulgação/AMUNAM)

 

A diferença do Maracatu dos homens está mais nos bastidores, segundo a presidente da associação. Enquanto eles são mais “cada um por si”, as mulheres são cuidadoras. “A gente se ajuda, uma leva absorvente pra outra, empresta um pente”. Muitas vezes, é enquanto bordam que nascem as temáticas que serão cantadas pela primeira e única mestra mulher, a mestra Gil. Geralmente as toadas vêm com alguma mensagem que leva o público a refletir sobre gênero, cidadania e violência.

 

O grupo balança os chocalhos e baila solto nos polos carnavalescos do Recife e de Olinda, além de cidades do interior de Pernambuco. O sucesso é motivo de orgulho e honra. Mas é um sucesso medido de um jeito diferente. Para Eliane, ver as mulheres fortalecidas e empoderadas pelo maracatu é o que mais lhe apaixona. “Isso também é um exercício de cidadania, de dar vazão ao desejo”. E o povo, como enxerga essa ousadia? “Existem mestres que apoiam e respeitam, mas ainda tem maracatuzeiros que olham atravessado. Só que a gente não tá roubando espaço de ninguém, a gente tá ocupando um espaço que é nosso!”, diz, soltando uma risada.

 

É de cabeça erguida que o Coração Nazareno acabou abrindo mais espaço para meninas e senhoras em outros maracatus – não só nos 23 grupos de Nazaré da Mata. “Os homens estão começando a entender. Acredito que daqui a cinco anos teremos mais mestras”, prevê a fundadora da agremiação. O trabalho também é importante para garantir a continuidade desse folguedo popular para novas gerações.

 

Em 2015, o Coração Nazareno comemorou 11 carnavais. Tudo indica que muitos outros carnavais virão. Ao me despedir de Eliane, fica um convite para visitar Nazaré da Mata e uma frase com a qual nós, do Brasis, concordamos inteiramente: “A cultura não é de homem ou de mulher, a cultura é das pessoas; a cultura é nossa! Se você não tem cultura, você perde sua história.” Amém, Eliane. E vida longa ao Coração Nazareno.

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

_Data de início: 22/07/2015

_Data de encerramento: 31/12/2015

_Observações: Eliane é pura humildade quando se fala em colaboração. Foi essa mesma humildade que a levou tão longe. "Existe uma ajuda às mulheres em situação de vulnerabilidade, então qualquer tipo de colaboração vem bem. Um dos meus colaboradores, por exemplo, é um açougueiro. Ele me dá osso pra fazer sopa. Tenho verduras do hortifruti, macarrão da quintanda. Pronto. Tenho tudo para a nossa sopa". Por isso, não se acanhe: vale divulgar o trabalho do grupo, chamar para apresentações na sua cidade, fazer conexões com outros contatos, mandar livro para a biblioteca e até ajudar na gravação do CD novo, muito importante para vender novas apresentações.Isso tudo gera oportunidades de renda, visibilidade e viagens, nem sempre abundantes para essas mulheres; além de fortalecer o grupo que fomenta uma tradição cultural tão importante para a história do país. E quem quiser saber ainda mais sobre o assunto, Eliane recomenda a leitura do livro A Mulher no Maracatu Rural, escrito por Tamar Alessandra Thales Vasconcelos, cuja dissertação de mestrado é focada no tema. Diz Eliane que Tamar anda viajando bastante com o Coração Nazareno e vai escrever um livro sobre o grupo.

Comentários

  1. marcio ramos disse:

    Parabéns a todos. Muito legal a materia. Aproveito e deixo minha contribuição: https://www.youtube.com/watch?v=C6PHe-_cTKQ

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