Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Cartografia da cultura alimentar gaúcha

 

Se o Pampa é um céu ao contrário, como dizia Jorge Luis Borges, ele também é uma constelação de sabores e aromas. Do fogo de chão que assa pacientemente um pedaço de costela à sobremesa (seja ela um sagu carregado de vinho, um doce de abóbora cremoso ou uma bela e amarela ambrosia), passando pelo chimarrão fumegante, tudo vira desculpa para o gaúcho se sentar à volta de uma mesa. Ou de um fogo qualquer. A chama vem da lareira, da churrasqueira, da fogueira. As gargalhadas vêm das mesmas bocas que devoram o campeiro arroz carreteiro ou uma chatasca, a polenta mole da colônia, um pedaço de pão com chimia. Nessa mesa, tu podes encontrar, ainda, uma baita de uma cuca caseira, quem sabe um tortéi recheado de moranga, um simples mandolate, aquela taça de vinho da serra e sim, também há cachaça – te aprochegue, que um traguinho vai te deixar mais assanhado que lambari de sanga.

 

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(Jussara Dutra. Foto de Bruna Antunes.)

 

Mas afinal, o que sabemos sobre a origem da culinária do sul? É com vontade de entender e catalogar a comida gaúcha, além de disponibilizar esse conhecimento ao público, que nasce o Instituto de Gastronomia Regional do Rio Grande do Sul. E foi com imensa curiosidade e fascínio (e não sem certo sentimento de responsabilidade, pois nasci no mesmo pedaço de terra) que conversei a respeito desse projeto pioneiro com sua fundadora, Jussara Dutra.

 

Interior das fronteiras sutis

 

Criada entre as fazendas da avó materna e do avô paterno, Jussara brincou muito na zona rural de São Borja, interior do Rio Grande do Sul. A cidade, fundada em 1682 por padres jesuítas, foi a primeira dos Sete Povos das Missões. A civilização mais antiga do estado faz fronteira com São Tomé, da província de Corrientes, Argentina. Desde essa época Jussara já entendia que “fronteira” é um termo um tanto subjetivo quando se fala em pampa, em missões, em sul do Brasil, em gaúchos e gauchos.

 

Mesmo depois de estudar psicologia em Santa Maria e ir morar na capital, a comida sempre esteve presente na sua vida de um jeito muito intenso. “Meu pai é muito cozinheiro e meu marido é de família italiana. Então tu imaginas, a comida sempre teve um papel central na minha vida”, conta. Essa paixão a fez buscar até uma formação em gastronomia em uma época difícil da vida: durante dez anos entrou e saiu do hospital inúmeras vezes, tratando um câncer. “Eu me dei conta do poder da comida como memória e afeto. Tive vontade de seguir isso, nem que fosse como segunda profissão”. Mas a coisa ficou séria quando, em 2011, o então governo do estado lhe chamou para cuidar de nada mais nada menos do que a cozinha do Palácio Piratini, morada do governador.

 

Encarou a proposta como um grande desafio e, mesmo achando que não daria conta, aceitou. “Propus que a gente saísse daquele modelo de cozinha internacional. Por que não fazer disso um projeto mais cultural, com cheiro de casa de mãe e de vó, que remetesse às nossas origens?”, relata Jussara. Através da culinária tradicional gaúcha, ela quebrou a tradição do palácio. De um histórico de glamour, ela transformou a cozinha do governador num lugar de reconexão com as origens do Rio Grande. As mudanças começaram logo: os ingredientes passaram a ser comprados da agricultura familiar. Mais comida saudável e sustentável começou a entrar na casa. Um terreno inutilizado se transformou em horta. Uma cisterna foi construída. Mas ainda não era o bastante. “O que é a culinária do Rio Grande do Sul? Eu não sabia de quase nada. Sabia sobre a minha região, a das Missões, da fronteira, da culinária campeira, do pampa, um pouco de Santa Maria e sua colonização italiana.” Para ela, aquilo não era saber muito. “Se eu queria falar e fazer comida regional, eu precisava sair do prato e entender aquela comida”.

 

Então Jussara criou o Grupo de Trabalho de Gastronomia Regional do Rio Grande do Sul. Um time de profissionais multidisciplinares que resgataria a história da comida gaúcha e pensaria como fazê-lo. Paralelo à articulação dentro do poder público, a cozinheira-psicóloga-pesquisadora começou a conversar com universidades da região, a fim de  mapear pesquisas já existentes. “Criamos tudo do zero, não existiam muitas referências; nem aqui nem no resto do país.”

 

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(Jussara e sua equipa da cozinha, no pátio do Palácio Piratini. Foto de arquivo pessoal.)

 

Como pilares, a iniciativa tinha 1. saberes e fazeres das cozinhas (pratos emblemáticos, receitas e afins) e 2. tradições e produtos (o que cada região tem, ingredientes e produtos). Pela primeira vez a gastronomia era vista como epicentro de uma política pública. O grupo saiu estrada afora. Cerca de 1300 entrevistas foram feitas num total de 176 municípios. A estratégia não poderia ser outra: falar com grupos de terceira idade. Ora, o conhecimento e a memória estavam nas mulheres idosas, as avós. “Conversamos com donas de casa, antigas quituteiras, restaurantes. Os produtores rurais também foram fontes importantes da investigação. Um trabalho incrível.” Nas cidades visitadas, ainda há pouca apropriação da comida como bem cultural e, segundo Jussara, o estudo também contribuiu bastante para reverter esse olhar. “Mais do que uma salvaguarda, era importante dar um destino para aquilo tudo. Resolvemos que a maneira de devolver o conhecimento aos municípios seria através da educação.” Um trabalho com as secretarias de educação foi iniciado, então, para promover o aprendizado da comida em si e dos elementos culturais dos cardápios.

 

Festival Binacional e o Instituto

 

O Rio Grande do Sul tem muitas festas populares, muitas delas centradas na comida, compondo núcleos comunitários. Com isso em mente, Jussara começou a percorrer estes eventos, até criar o Festival Binacional de Enogastronomia e Produtos do Pampa, uma integração da fronteira entre Uruguai e Brasil. O evento tem como objetivo a recuperação da tradição e manutenção do bioma Pampa, um trabalho de defesa e celebração dessa cultura, além da construção de redes entre cozinheiros, universidades, restaurantes, secretarias de turismo e escolas. Em sua segunda edição em 2015, a mudança de visão da comunidade local ficou evidente. “Impressionante como, de um ano para outro, os restaurantes passaram a criar coisas a partir do simples e incorporar isso como algo importante, algo de valor. De repente, a mandioca tinha a ver com a nossa identidade”, conta a pesquisadora.

 

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(Churrasco no II Festival Binacional de Enogastronomia e Produtos do Pampa. Foto de Alan Gonçalves/FlashFood.)

 

Infelizmente, não houve continuidade do processo na nova gestão do governo. O Grupo de Trabalho de Gastronomia Regional do Rio Grande do Sul, portanto, acabou oficialmente. Mas o time quer seguir como projeto autônomo e já está num estágio avançado da criação do Instituto de Gastronomia Regional do RS. Querem assumir, organizar, seguir e disponibilizar a pesquisa. “A gente está num momento burocrático de definição. Vamos precisar de ajuda, com certeza. Até porque ainda tem muito a ser feito: tem recortes étnicos, tem muita diversidade aqui… Não conseguimos investigar tudo!”, convida Jussara. Para ela, há uma urgência em reconhecer outras identidades: a indígena e a negra. “A força do doce de Pelotas, que todo mundo enxerga apenas por sua origem portuguesa, está muito ligada aos negros, pois se perpetuaram por mãos de escravas”, exemplifica. O Instituto nasce com os seguintes eixos: continuidade da pesquisa sobre os saberes e fazeres tradicionais do estado e dos  seus produtos; valorização dos produtos locais; incentivar pesquisas e projetos acerca do uso da nossa biodiversidade pela gastronomia; trabalhar pela aproximação cada vez maior entre cozinheiros e produtores do RS.

 

Com a premissa de que a tradição não é estanque e que é possível acreditar no fazer coletivo, a gente faz coro à Jussara e chama: vem dividir esse prato, vem.

 

“E lá vamos nós

Seguindo a frente fria

Pampa adentro e através”

Indo ao Pampa – Vitor Ramil

 

(Foto de capa Fogo de Chão | Visões do Sul  por Tiago Belinski.)

 

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

_Data de início: 24/09/2015

_Data de encerramento: 31/12/2016

_Observações: O que o Instituto precisa é de voluntários com vontade de organizar e publicar os estudos. Novos grupos de pesquisas de coletivos e universidades também são super bem-vindos para abrir novas frentes, fazer novas pesquisas ou mesmo aprofundar o trabalho iniciado. Quem quiser entrar em contato com o IGR/RS, pode escrever para:: contato@igr-rs.com.br e jussaradutra@igr-rs.com.br.

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