Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

O mistério da vida é ser

Em13-11-2016

 

Por Carolina De Marchi.

Vivência e pesquisa: Carolina De Marchi, Raquel Catão, Thaisa Figueiredo, Xavier Bartaburu.

Produção coletiva, fruto da residência Os Brasis em São Paulo.

 

Graça sem receio se entrega à dança

num sacolejar maroto

roda a saia

simbora!

Esse é seu dom:

dançar.

No ritmo da caixa

entoa o cântico

na métrica, encaixa o verso:

cuidado pra não quebrar!

Lá no Maranhão ou em São Paulo

o mistério é o mesmo

“porque pra Festa do Divino tem que se doar.”

E bota o boi pra brincar

tira as coisa da parede

pede flor no cabelo

brilho no olhar.

Mais dança,

mais roda,

mais saia:

“É pro povo, é pra mim,

é também pra orixá!”

No Morro do Querosene

se apressa para estar

simples e sem brinco,

assim, solta no mundo

na rua

na praça

gosta de ser Graça,

gargalhar.

De rosa, de roxo e de renda

ronca a sereia.

De cor e de perto

ensina.

Empresta o gesto doce,

mas com um pouco de pirraça:

até prega peças nas crianças.

“A vinagreira vem de lá,”

anuncia da varanda.

E da cozinha, o cheiro chama:

camarão moído misteriado na panela

borbulha a pauliceia fumegante desvairada

veludo de coco laranja

pode provar?

 

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Meio sem jeito, ela conta que é mesmo gratificante ser essa que ensina, que ajuda, que aconselha e que faz. Porque, sobretudo, Graça Reis é uma dessas mulheres que fazem. Não se demora em palavras nem explicações aprofundadas sobre sentidos. A vida acontece, oras. Embora goste de um bom dedo de prosa, Graça está mais à vontade colocando a mão na massa, no arroz de cuxá, na saia de chita, no couro do tambor. “A Graça não gosta de ficar parada, é Graça elétrica”, explica ela mesma. Sua história é conjugada no plural, sempre emparelhada com as irmãs e a sobrinha, a comunidade do Morro do Querosene, as escolas, os amigos.

 

 

Da latinha ao couro

 

A primeira Festa do Divino que fez foi aos nove anos, em São Luís do Maranhão. Latinha de leite Ninho, roupa de papel crepom, só criança. Era brincadeira, mas também era de verdade. Todo mundo ajudou um pouco. Raimundinho, que cuidava da quitanda enquanto o pai dormia depois do almoço, dava manteiga e farinha. Dona Gessi pegava os ingredientes e preparava o bolo, já que as crianças não sabiam fazer. “A gente tomava banho, se arrumava, pegava as latinhas e cantava o que aprendíamos com as senhoras.” Mal poderia imaginar Graça que, algumas décadas depois, um monte de gente estaria lhe procurando para perguntar como é, como faz e como sente a festa do Divino. “Nem tem explicação, porque é uma coisa tão forte, né?” Ela e suas irmãs Zezé e Dindinha, mais a sobrinha Bartira, são hoje Caixeiras do Divino: guardiãs de um mistério transmitido por mulheres, costurado através de gerações, décadas a perder de vista.

 

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“Lá no Maranhão eu dançava, mas não como em São Paulo. Corria para o Tambor de Crioula para aproveitar o baile. Animava este lado, mas ainda não tocava caixa na Festa do Divino, por exemplo.” Aí, quando chegou certa idade, alguém disse: toca a caixa! E ela disse que ia tocar. Nunca pensou que tocaria como as senhoras que via nas festas. No início, ficava dividida: “o povo lá dançando e eu aqui tocando caixa”. Depois que teve os dois filhos, se interessou mais pelo religioso. “As coisas passam na vida da gente. Tem momentos que a gente quer aquilo, tem outros que a gente já quer outra coisa. E eu dei graças a Deus que vim mais pro lado do religioso, porque é muito bom também.”

 

(Um dos filhos está no Maranhão, que é o Francinei. O outro é o Josinei, mais conhecido como Teo. “Esse mora em São Paulo, é músico, trabalha com criança, dá oficina. O que mora no Maranhão trabalha no correio.”)

 

Um olhar para longe relembra a mãe, Francisca dos Reis Menezes, que acolhia todo mundo. “Todos lhe respeitavam. Apesar dela dançar pouco, ela tinha um dom, que ela fazia responso a Santo Antônio. Ela colocava um copo com água e a pessoa dizia, por exemplo, que perdeu um anel. Ela rezava e via no copo onde tava o anel. Ela tinha essa experiência. Ela sempre chamava a gente: senta aqui, vem aprender, mas eu olhava para aquilo, e eu não via nada. Já a Dindinha, que recebe, enxergava. Cada um com seu dom, né?”

 

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E qual é o seu dom, Graça? Ela olha para cima, franze o nariz numa risada e solta: “Acho que o meu dom é dançar!” As mãos se juntam numa palma suave, unhas pintadas de rosa colorem o ar.

 

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Mas parece que esse dom vai mais além. A presença de Graça tem um quê de alento. Ou de encanto. “Tem uma coisa comigo que às vezes as pessoas estão chateadas, cansadas, aí vêm, choram e dizem: ‘Nossa, fiquei tão aliviada’. Na festa do boi, quando tô dançando e cantando, as meninas dizem: ‘Ai que energia! A senhora tem uma coisa forte em você’. E acho que esse é o dom, né? E eu nem faço nada.”

 

 

A sorte de São Paulo

 

Numa noite fria, a convite de um conhecido da família, o professor Ferreti, Graça chegou a São Paulo. Para sua surpresa, não tinha ninguém esperando na rodoviária. Começou a chorar. Pensava: se tivesse dinheiro, voltava para o Maranhão. O desencontro durou várias horas, as chamadas feitas no telefone público não tinham resposta. “Pensei que eles tinham me enganado!”, conta com voz dramática, quase um grito. Mas logo o anfitrião Ferreti apareceu e a levou para sua casa, onde Graça morou e cozinhou um tempo. O mesmo professor, a quem se refere com tanto carinho, lhe apresentou a Tião, do Grupo Cupuaçu. (O Cupuaçu é uma associação de criação, pesquisa e difusão de cultura popular brasileira).

 

Foi num ensaio do Vento Forte, era Tambor de Crioula. Tímida, mal quis dançar. Quando acabou a dança, perguntaram se não cantaria uma toada. Ela começou:

 

A sereia roncou

Lá fora na areia

Roncou, roncou

Lá fora na areia

 

Pronto. Estreava uma relação ainda mais forte com a cultura maranhense, mais forte do que na própria cidade de nascença. “Eu dei muita sorte em São Paulo. Graças a Deus.”

 

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Não demorou muito para ajeitar seu cantinho, perto da “sedinha” do Grupo Cupuaçu. Assim é a vida no Morro do Querosene e redondezas: uma vida que escapa à velocidade da capital paulista. Um lugar onde a gente encontra o Maranhão. Um bairro que parece mais cidade do interior. Sempre tem alguém visitando ou pedindo uma ajuda da dona Graça (o dono do bar ao lado fica com a chave do portão da frente, por exemplo). Pode ser em pleno domingo: pode apostar que tem alguém dizendo: “Ei Graça, você me ajuda fazer uma oficina?”

 

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As inseparáveis irmãs Dindinha e Zezé vieram de ônibus clandestino, para pagar menos. Mais uma risada traquina se esparrama quando fala da aventura. “Essas duas… comiam a noite inteira! Você quer comer, Gracinha? Eu não, quero é dormir!” É no meio de risadas que ela fala das irmãs. Pra onde uma vai a outra vai. Foram convidadas a dar uma oficina de caixa. Deu tão certo que pediram uma demonstração da Festa do Divino. Era a primeira vez que acontecia a festa em São Paulo, com autorização de pai Euclides, irmão de Graça e um dos mestres mais respeitados do Maranhão, babalorixá fundador da Casa Fanti Ashanti*. Era o ano 2000. Roupas emprestadas, o espaço estava em construção, só tinha frango desfiado para as crianças. No ano seguinte, tudo estava melhor: a construção concluída, mais organizado. “E aí foi, 17 anos de festa.”

 

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Com o Grupo Cupuaçu, teve época em que rodavam o chapéu pelas ruas da cidade. O dinheiro arrecadado dava para saias, comida. “Aí o Tião tinha um boi pendurado e eu dizia: bota esse boi pra brincar, Tião! Tira dessa parede! Um dia tomamos coragem e fomos fazer o boi. Compramos um veludo pra fazer a roupa dele, era uma coisa rodada assim. Começou com oito, dez pessoas, era todo mundo feliz.” De lá pra cá, a festa do boi aumentou um tanto. Atualmente duas mil pessoas vêm ver o boi na praça do Morro do Querosene.

 

 

Dos sabores, o mais simples

 

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Há algo de festa também na cozinha. Uma cozinha que não é pouca, nem qualquer. “Sou de Nanã, isso me trouxe muito pro negócio da cozinha. Eu ficava olhando, nas festas grandes. Tanto que eu gosto é de fazer comida de panelão!” Carne de sol. Farofa. Torta de camarão. Caruru. Vatapá. E, claro, arroz de cuxá, aquele tão típico do Maranhão. Ali vai gergelim, farinha seca, vinagreira, camarão. “Ô Carla, pega pra nóis um pouco de vinagreira aqui pra mostrar pra eles!” Nas mãos, umas folhas escuras e finas que, na boca, têm sabor de vinagre – e o que mais seria?

 

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O esmero do preparo acaba num início: o da celebração. “A Graça antes da festa é uma preocupação, uma ansiedade, uma correria. Quando termina, é só agradecimento. Começa o ano, começa a vida pra gente. A gente fica muito forte. Muito forte, muito forte.” Na repetição, um ritual de vida que segue. Reedita-se um compromisso com a cultura.

 

A gente é que agradece, Mestra Graça. Enquanto você desejar, que siga lambuzando o mundo com sua alegria resistente e genuína, nos lembrando do quanto a vida pode ser boa quando simplesmente nos ocupamos de vivê-la.

 

 

“Eu sinto orgulho de ser a Graça que sou. Sinto que estou colaborando com a cultura. Deus me deu um dom que eu posso levar às pessoas. Para levar em frente.”

 

 

*Pai Euclides Talabyian faleceu em 17 de agosto de 2015, vítima de um infarto.

 

 


 

TERRITÓRIO

 

Meio nordestino, meio amazônico, o Maranhão é o estado com maior diversidade ambiental do Brasil. Não bastasse a confluência de três biomas – Caatinga, Cerrado e Amazônia –, seu território inclui também praias, manguezais, matas de cocais, um delta em mar aberto e um deserto à beira-mar, repleto de lagoas.

 

A mesma regra da diversidade se aplica à população: 70% dos maranhenses se autodeclararam pardos no último censo, testemunho da miscigenação através dos séculos entre os povos nativos, os colonizadores portugueses e os africanos trazidos como escravos para trabalhar nas lavouras de cana, arroz e algodão. O grande número destes últimos se revela na quantidade de terras quilombolas em processo de titulação no estado, o maior volume do Brasil: 337 até o momento.  

 

A despeito da presença maciça de portugueses desde o início da colônia, a capital maranhense, São Luís, é a única cidade do país fundada por franceses. Depois de uma rápida ocupação holandesa, a cidade passou finalmente às mãos de Portugal em 1644. São Luís foi particularmente próspera no século 19, quando se tornou porto de escoamento para a produção de algodão no interior do estado. No auge, chegou a ser a terceira cidade mais populosa do Brasil, atrás de Rio de Janeiro e São Paulo. Depois veio a decadência, e a capital maranhense passou a primeira metade do século 20 isolada do resto do país. A descoberta de minério de ferro na Serra do Carajás, na década de 1960, ativou outro grande ciclo econômico, resultando na transformação de São Luís na maior cidade portuária da costa norte brasileira.

 

A riqueza proporcionada pela mineração, no entanto, não se reflete na distribuição de renda, uma vez que o Maranhão é o estado com o maior número de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza no país – cerca de 13% da população, quase quatro vezes mais que a média nacional. A miséria é um dos fatores que, ainda hoje, continua impulsionando milhões de maranhenses a viver em estados mais ricos, como São Paulo, particularmente nos canaviais do interior.

 

Na capital paulista, onde o ciclo de migração é mais antigo, os maranhenses se concentraram nos bairros periféricos, junto a outros milhões de nordestinos. Cabe ressaltar, no entanto, a presença de um enclave cultural no bairro do Butantã, precisamente numa área conhecida como Morro do Querosene, onde se realiza desde 1990 a festa do bumba-meu-boi, organizada pelo grupo Cupuaçu. Com o tempo, outras manifestações culturais se somaram ao calendário da sede do grupo, incluídas na programação de festas e oficinas. Tambor de crioula, coco de roda, cacuriá e arroz de cuxá são apenas algumas das expressões que fazem do Morro do Querosene a melhor tradução do Maranhão em São Paulo.

 


 

SABER

 

Agostinho da Silva, ensaísta português, descrevia a Festa do Divino Espírito Santo como “uma festa para celebrar o futuro”. Um futuro dos mais auspiciosos, diga-se, no qual uma criança, coroada imperador do mundo, libertava os presos da cadeia e presidia um banquete onde todos comiam de graça. Arrojada e libertária, para não dizer herege, a festa terminou sendo banida de Portugal, salvo no arquipélago dos Açores, onde se manteve através dos séculos, embora numa configuração menos utópica e mais ao gosto da Igreja Católica.

 

Foram os imigrantes açorianos que trouxeram a Festa do Divino ao Brasil, provavelmente já nas primeiras décadas da colonização. E de tal modo conquistou a população que rapidamente se espalhou pelo país (há celebrações do Divino nas cinco regiões), até se tornar a mais popular das nossas festividades religiosas lá pelo fim do século 19. Conta-se, inclusive, que o título de imperador dado ao monarca do Brasil pós-independência foi uma sugestão de José Bonifácio baseada na familiaridade que os brasileiros tinham com essa figura. Poderíamos ter tido um Rei do Brasil, mas o Divino nos deu um Imperador.

 

Historicamente, a Festa do Divino tem relação com o Pentecostes, celebração cristã que relembra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos 50 dias depois do domingo de Páscoa. Isso significa que, pelo Brasil, a festa acontece entre maio e junho – inclusive no Maranhão e na cidade de São Paulo, em sua versão recriada pelas caixeiras da Família Menezes: Graça, Dindinha, Zezé e Bartira.

 

No Maranhão, contudo, apesar da ardente fé católica que permeia o culto, o Divino adquiriu um insólito vínculo com as religiões afro-brasileiras. Esse fenômeno teria se dado inicialmente na cidade de Alcântara, do outro lado da Baía de São Marcos, a mesma aonde imigrantes açorianos teriam introduzido o culto ao Divino no estado. Por alguma razão que se desconhece, o que antes era uma celebração estritamente portuguesa passou a figurar no calendário dos terreiros de candomblé, tambor de mina e umbanda – primeiro em Alcântara, depois em São Luís, com destaque para a Casa Fanti Ashanti, centro de tradição jeje fundado por Euclides Menezes, irmão de Graça Reis.

 

Hoje a Casa Fanti-Ashanti é uma das grandes reservas imateriais das tradições maranhenses, dona de uma extensa programação que inclui, além dos ritos habituais de candomblé e tambor de mina (como o baião de princesas), festas profanas regadas ao tambor de crioula e cultos de outras tradições espirituais, como a pajelança indígena. E, é claro, a Festa do Divino, ocasião em que se pede licença aos orixás e aos vodunsis para dar passagem ao Espírito Santo, cuja presença é invocada pelas vozes e pelos tambores das caixeiras.

 

As caixeiras – sempre mulheres – participam da festa do começo ao fim, preenchendo o culto com seus cânticos quase que de maneira ininterrupta, de modo a manter aberto o canal com o Divino. Para cada momento do ritual há um toque ou canto específico: para a alvorada, para o levantamento do mastro (que demarca o lugar da festa), para o banquete do Império (o grupo de crianças que compõe a corte do imperador) e assim por diante.

 

Mais do que apenas criar a trilha da festa, porém, as caixeiras representam uma verdadeira irmandade de mulheres, regida por estritos códigos de conduta e respeito mútuo, fundamentais para o sucesso do ritual – dado que grande parte da organização do culto é de responsabilidade delas. Tamanha coesão revela sua máxima potência durante a festa em si, quando as caixeiras, em perfeito uníssono – tanto na voz quanto nas caixas – produzem o que José Miguel Wisnik chama de “o poder mágico de evocar uma fundação cósmica”.

 


 

 

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