Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Do começo: as mãos

Em11-11-2016

 

Por Carolina Grohmann.

Vivência e pesquisa: Carolina Grohmann, Marina Thomé, Rodrigo Sena.

Produção coletiva, fruto da residência Os Brasis em São Paulo.

 

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Muito antes do pé levantar poeira, é sabido que o terreiro se rende às mãos. São elas que precedem a música, quando a partitura ainda é imaginária. As notas são marcadas pela intensidade do tamborilar dos dedos, quando estes tocam a superfície; vale o descanso do sofá, o apoio da mesa, o joelho e até mesmo o ar. Basta ouvir.

 

Pois muito antes, inclusive do terreiro, são elas quem chamam, abençoam os meninos e as meninas e, num puxão de quem lidera, o convite é imperativo: vamos! Foi assim que Zeca levou Carlão da cristandade ao jongo, com a falsa promessa do retorno à igreja. Pelas mãos, iam pai e filho.

 

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Como um coração descompassado, as mãos entoavam o bumbo. Estava tudo pronto. O pó, ainda invisível, era carícia aos pés com o andar da separação. Crianças de um lado, jovens do outro. Às mulheres e aos homens, já na idade da malícia, lhe cabiam o pedaço de chão de separação. Ali, já aprendiam que a cada um, pelo sexo nascido, uma posição lhe pertencia. Mas é no cantar do bumbo, quando as mãos lhe dão som, que o olhar e o corpo se encontram. Uma onomatopeia do pó. O som, habitado pela batida do bumbo, dava forma à poeira. Como num corpo vivo, o chão do terreiro era rasgado a cada pisar. 

 

 

Oi Pirapora

Oi Bariri

 

 

E ali, representados no cantar e na batida do bumbo, o amém era repetido.

 

Oi Pirapora

Oi Bariri

Quem tem dinheiro vai

Quem não tem que fique aí

 

 

“Batia um bumbo grande no barracão e aquele povo, homem, mulher e criança, que não estavam na igreja, iam prestar homenagem ao santo. Devia ser dentro da igreja, mas não… Iam pro barracão”. E aí ficavam, pois a igreja ainda tão colonial não lhes dava o direito à resposta. E também aí, onde ficavam, a confirmação vinha de perto, dali do chão. A poeira, testemunha da mágica que acontecia, levantava para confirmar cada amém. Quando a profissão de fé chegava ao fim e os pés ansiavam por nova poeira, as mãos silenciavam o bumbo. O batismo da confirmação se dava no abafar das mãos no bumbo. A mão no bumbo. O silêncio quebrado. Dá licença! A voz do coração era cantada três vezes.

 

Ê-á!

Ê-á!

Ê-á!

 

 

Do povo antes separado, o terreiro era um só organismo. Os ouvidos na licença tríplice. O respeito era respondido.

 

Ê-á!

Ê-á!

Ê-á!

 

 

Licença dada! Que um novo cristão anime a festa! Que um novo jongueiro desabafe o bumbo e o deixe livre para bater novamente! Da didática da repetição, as crianças ali entendiam. Eu posso! Dos pequenos pés marcando o tapete de pó, do punho imitando a baqueta que batia o couro, a aliteração alimentava a aprendizagem. Das anuais idas a Pirapora do Bom Jesus para festejar o padroeiro, o amor das mãos maternais com a batida dos pés paternais fecundou: jongo, embrião do samba. 

 

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Dos instrumentos às carícias: as mãos

 

Sumiço e surra são fatores do suor. Ainda pequeno, Carlão saiu para comprar café e açúcar. Voltou meses depois, com dinheiro no bolso. “No caminho, Antônio me chamou pra pintar umas casas em Santos. Fui”. Quando a mãe, já descrente da sua vida, o encontrou, era só carícia. “Meu filho!” A ansiedade pelo fim da tarde, quando Zeca, o pai, voltava do trabalho, deixava o dia longo. Mais demorado ainda foi o reencontro. Como antigamente, pelas mãos, pai e filho se encontraram. Já não era de pó. Já não era de bumbo. A onomatopeia era dor. Das mãos, vinham socos.

 

 

 

Vinham de uma única mão, até. Seu corpo era prensado à parede. “Vai matar o menino!” Só parou quando a mão o levava a ser maior que o pai. Nas alturas, o punho do pai o ameaçou: “Tenta sumir mais uma vez!”

 

A justificativa fazia sentido. Era mais uma vez. Isso porque, anos antes, Carlão tinha resolvido visitar a bisavó nhá Raimunda em Caçapava. Moleque de oito anos. Em São Paulo, o pretérito perfeito doía. “Sumiu!”. Lá, aprendeu a ordenhar vaca, cuidar do gado e ainda aprender o ritmo do chamado dos bois:

 

Ô

Ô

Ô 

 

 

A caminho do sal, os bois iam. Quantas fugidas Carlão ainda daria? A porteira se abriu e, como aos bois, um chamado parecia ser tentador. O que os outros não entendiam é que não era fuga. Era ida. Ida à vida para aprender. Meter o peito no mato para ouvir. Encher os olhos de mundo para conhecer.

 

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Aos 11, na Praça da Sé, engraxava sapato. “Nunca pedi nada pra ninguém, sempre gostei da minha independência”. E a liberdade, Carlão? Como era bom se jogar no Rio Tietê e nadar… Deixar as roupas na beira e se jogar para sentir o frescor da água. E, a cada gosto de liberdade, a surra vinha como ponto final. Dessa vez, voltou para casa vestido de folha de mamona. A mãe estranhou: no meio da tarde e o menino enrolado no cobertor! Soube pela vizinha: nadara no Tietê. Se tinha um couro que não lhe agradava o ouvido quando batido, esse era o seu. Seu corpo recebeu muitas carícias, mas também muita porrada. “Se eu ganhasse um real a cada surra que eu tomei da minha mãe, estava milionário. Mas eu sinto saudade. Com ela, aprendi muito.”

 

 

 

O ardido da mão transborda seu corpo. São as marcas invisíveis as que mais doem. Se hoje ri da lembrança, é porque parece esquecer a dor causada. De aprender a receber, deu. Se samba é o prêmio, o caminho até ele é doloroso. Assim passou a ser com os seus.

 

Das mãos, Carlão também aprendeu o boxe. Porrada é música, educação, esporte e dor. Lembrança, herança. O amor bruto cuspido em roxo. Mais uma didática de chão.

 

Carlão sabia quando o toque deveria pesar. Como torneiro mecânico, acompanhou o começo do plástico no Brasil. Um décimo de milímetro poderia ser fatal. Saía bem, porque tem o dom. Mas o prazer era usar as mãos para os sons. Há mais de trinta anos, um vinho tomado a torto – pois nunca fora muito fã de álcool – foi um bom presente quando este acabou e o tonel virou cuíca.

 

 

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“Hoje é nylon, o som mudou. A gente fazia surdo, fazia cuíca. Antes, artesanal. Hoje, industrial.”

 

 

 

Da arte de construir sons, se encontrou. “Toco todos os instrumentos de percussão”. Iniciado na Rua Lavapés, em 1955, ganhou mais um campeonato. A ingratidão diante do sucesso foi a alavanca para a criação da sua escola. Já tinha experiência, passava da hora de ir novamente. A Unidos do Peruche, em 1956, entrou para brilhar. “Minha escola nasceu grande!” Novamente, sentiu a vida. Dessa vez, pelas mãos, foi apresentado a um novo som. Aplausos.

 

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Uma mão: muitas

 

Carlos Alberto Caetano entende de superlativos. Tornou-se Carlão quando deu o passo seguinte. Não basta ser um entre tantos. O complemento é especial. “Não é só Carlão do Peruche. É muita gente” – porque ele não sabe ser sozinho. Samba nunca é só. Samba faz sentido porque é uma construção a muitas mãos. Samba é olhar para seu espaço, te entender quanto sujeito e afirmar: Somos! No samba, a pessoa é única: Nós!

 

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“Tenho a Peruche como um filho meu!” e, ciente disso, sabe que a cria nunca será sua. A manutenção se faz pelas mãos de saberes. Mãos de costureiras, mãos de passistas, mãos de instrumentistas, mãos de compositores. Porque, como no jongo, o espaço é um só organismo. E é preciso cuidado. O filho mais velho tem a responsabilidade de levar os mais novos. Assim se fez e ainda é. Na Peruche, criança só desfila diante do boletim. E isso não basta. Foi uma boa pessoa durante o ano? Fez bem aos amigos?

 

Carlão tem a missão de desconstruir o Carnaval. O que tanto levou para profissionalizar, para ser reconhecido, foi desvirtuado. “Hoje, não tem carnaval, mas sim uma competição entre escolas de samba. Está tudo formatado, não tem mais a espontaneidade e a liberdade no movimento… Fazer o que se sente!” Foi um longo caminho para a resistência virar cultura. “Nada é fácil na vida da gente. Me lembro do sacrifício que fazíamos para colocar a escola na rua. Mulheres costurando fantasias, bordando lantejoula, decorando… E sem interesse nenhum!”

 

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Hoje, aos 80 anos, passa a noite no samba e os domingos no Cruz, o campinho de futebol. Para a sua escola, ainda resta um pedido. Mais um campeonato – e então, diz, pode morrer sossegado.

 

Sem mais construir sons, Carlão agora se dedica a produzi-los. A cuíca ainda chora em suas mãos. Elas, agora, estão com uma nova missão. Apontar pessoas e situações nas fotos. E viaja, imerso no passado exposto, literalmente corroído no papel. Não importa. Sua memória ninguém tira. Sabe que, assim como na aliteração das composições, a repetição também é uma didática.

 

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As mãos vêm se tornando cada vez mais invisíveis. Sua Escola cresceu.

 

 

“Aqui, na Peruche, primeiro é comunidade. Segundo, a comunidade também. E o terceiro? O terceiro, quer saber o terceiro? É a comunidade também!”

 

 

 

Não há barulho, ainda que as mãos estejam ocupadas demais. Elas estão de mãos dadas, umas às outras. E, além de tudo, agora têm nome: comunidade.

 

 


 

TERRITÓRIO

 

A Casa Verde é um bairro da zona norte de São Paulo, assim nomeado por ser conhecido pelas sete irmãs moradoras de um sítio da região. As versões das histórias que explicam o nome são três: (i) o casarão era verde, (ii) as janelas do casarão eram verdes, e (iii) verde era a cor da sede de uma fazenda localizada à margem direita do Rio Tietê. Caetana Antonia de Toledo Lara e Moraes (1754), Gertrudes Genebra de Toledo Rendon Freire, Joaquina Luisa Delgado de Toledo e Luna (1762), Puqueria Leocadia Domitilla Ordonhes de Toledo (1756), Ana Teresa de Araujo de Toledo (1751), Maria Rosa de Toledo Rendon  (1758) e a caçula Redunzinda de Toledo (1764) eram “as meninas da Casa Verde” do século 18. O bairro era para se chamar Villa Tietê, mas o conhecimento das “sete irmãs solteiras da Casa Verde” acabou caracterizando o bairro.

 

Hoje, Casa Verde é conhecido como um “tradicional bairro de sambistas”, famoso pelas escolas de samba: Império da Casa Verde, Morro da Casa Verde e Unidos da Peruche. Inclusive o bairro chegou a ser homenageado por Adoniran Barbosa, que reconheceu a fama de sambista do lugar na música No morro da casa verde.

 

Oficialmente, o bairro foi fundado em 21 de maio de 1913, sendo um bairro residencial de classe média. A Rua Zilda, exaltada no samba de Carlão, é a rua mais movimentada da Casa Verde e também a mais importante, pois é ela que dá acesso à Casa Verde Baixa, sentido centro de São Paulo.

 

Já Parque Peruche é um bairro residencial localizado no distrito da Casa Verde sendo, por isso, frequentemente confundido com o bairro homônimo. Pouco se sabe da origem do nome do bairro, mas uma das hipóteses é de que seja uma homenagem ao doutor Paula Peruche, importante médico na utilização de uma receita para tratamento da gripe espanhola, em grande epidemia de gripe em São Paulo, na década de 20.

 

No século 19, Pirapora do Bom Jesus, no interior de São Paulo, era o local de encontros de negros escravizados acompanhados pelos seus senhores, que partiam em romarias em reverência ao padroeiro da cidade. Enquanto a estes cabia a Igreja, aos escravizados os barracões eram bem-vindos, onde jongavam. Daí, aos poucos, o samba paulista foi sendo construído.

 


 

SABER

 

No meio da plantação de café, os escravizados cantavam quando o feitor se aproximava:

 

O sol vermelho está quente. O que parecia verso era uma forma de avisar que o inimigo estava chegando (para os bantos, o sol é símbolo de autoridade, enquanto vermelho é perigo). A linguagem ambígua entra como uma das características que o samba herdou do jongo. Já a resistência é a principal delas. Além do jongo, outras manifestações também contribuíram para a formação do samba, como o coco e o calango. Mas é pela tradição oral que o samba permanece, resiste.

 

O ponto de partida do samba vem do batuque africano da região de Angola e do Congo. Numa sociedade em que a cultura escrita ainda não havia penetrado, as canções tinham o papel de permitir o comentário social (a crônica dos acontecimentos). Por isso a grande importância das canções, que também evidenciam sua coletividade no ato.

 

Pelo jongo, os negros praticavam suas habilidades de dizer de modo indireto e cifrado. Metáforas eram usadas para compartilhar saberes, histórias, além de fugas. A ironia também estava presente nos cantos, estes sendo sempre recriados a fim de serem transmitidas histórias sagradas, adivinhas, lendas, expressões. A permanência mostra a resistência dos negros que lutaram pela sobrevivência, sem deixar que suas raízes e histórias fossem esquecidas.

 

O samba de bumbo vem como parte dos rituais religiosos ocorridos em homenagem aos santos padroeiros católicos. No caso de Pirapora de Bom Jesus (e também como em tantas outras cidades brasileiras), o preconceito racial e social impedia a participação do negro nas procissões católicas. Por isso, eles se refugiavam em um antigo barracão e lá faziam o que hoje é uma das principais referências do samba paulista: o samba de bumbo. Seu condutor era a figura mais respeitada, sendo chamado de “pai do bumbo”. Quando alguém queria puxar um canto, tinha que pedir licença a ele.

 

O samba de bumbo recebeu diferentes nomes de acordo com a época e localidade em que ocorria. “Samba”, “samba campineiro”, “samba antigo”, “samba de terreiro”, “samba de umbigada”, “samba caipira”, “samba lenço”, “samba de Pirapora” ou “samba paulista” são alguns dos termos encontrados para designar a manifestação.

 

Por sua vez, o termo “samba de bumbo” vem em detrimento do termo tradicionalmente usado, “samba rural”. Isso se dá pelo fato do samba já estar, há muito tempo, incluído em ambiente urbano. Outra razão pela utilização do conceito “samba de bumbo” vem pelo fato do bumbo ser o instrumento que diferencia este gênero dos demais sob a denominação “samba”.

 


 

Comentários

  1. Igor disse:

    Que texto incrível! A delicadeza das palavras nos transportam pra frente do Carlão nos contando sobre sua vida!

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