Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Aula de Guarani

Em11-11-2016

 

Por Mayra Fonseca.

Vivência e pesquisa: Luísa Estanislau, Mayra Fonseca, Michel Rios, Suann Medeiros.

Produção coletiva, fruto da residência Os Brasis em São Paulo.

 

 

(Se eu não soubesse escrever, este texto estaria correto.

Mas é porque sei bastante ortografia e gramática que eu erro,

em português.

Na tentativa de me libertar das categorias de pensamento

que não são transponíveis a essa superfície, aceito:

isto aqui não é a história de um Mestre Guarani.

Uma história de KARAI (1), com H, se faz em conversas,

em rodas de saberes e em comunidade.

É preciso ouvir sua voz para entender sua presença:

sim, existem Guaranis em São Paulo!

Entre eles conheci meninas que também foram batizadas Mayra.

Pela textura do cabelo e seguindo o desenho de nossos olhos…

algo em nós é familiar.

Mas a cada visita

– “a Juruá chegou!” –

fui assumindo o meu lugar de ausência:

não Guarani, é aqui o que sou.

E ainda que traga comigo “um colar de muitas histórias (2),

isto também não é sobre a minha história.

Eu me distancio da linguagem de documento

porque não posso ser autora.

Peço licença para me aproximar da melodia

que sussurra em mim

como seresta de infância e reza de vó ao pé do ouvido

– tocada pela mão Guarani, desperta pelos que vieram antes –

faço de minhas palavras uma intenção de instrumento.

Este texto é uma vontade de maior sintonia:

não posso dizer o que é ser Guarani, porque eu não sou.

Tento ensaiar o que pode vir a ser harmonia:

faço um convite à escuta e ao aprendizado.)

 

 

MBA´EVE (3): nada

 

 

 

Toda imagem se dissolve.

Nenhuma palavra é justa.

Escrever?

Desaprender.

 

 

Em uma de suas últimas falas para a nossa câmera, Pedro Macena parecia entrelaçar e confirmar o nosso sentimento como em nó de fio que marca o término de uma pulseira de miçangas. Suas frases eram tão sólidas quanto as paredes da  OPY´I (4), onde aquela conversa se fez ritual de passagem em nós. Também eram doces e óbvias como as amoras que as crianças da aldeia nos ensinaram a catar no chão e nos galhos de árvore durante a manhã daquele dia.  

 

 

“Para aprender Guarani, é preciso desaprender.”

 

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Porque as palavras têm a alma de quem diz e reverberam o seu sentimento ao redor. Cantar é verbo mais adequado que contar, é o som de cada um que faz de uma conversa um ritual. Não existe dizer só por dizer, só existe quem pode se expressar.

 

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Ele nos respondeu e sabíamos que nosso encontro estava pronto para ser compartilhado: estava mais puro, mais bruto, que antes. E, portanto, mais verdadeiro. Na nossa primeira visita à TEKOA PYAU (5), chegamos carregados de perguntas. Na última, nos despedimos repletos de silêncio. Se o som não era Guarani, talvez estávamos apenas fazendo barulho.

 

 

NHANDE: nós

 

 

Uma história não existe.

Existe a convivência –

entrelaçada, ritualística –

que faz de um, todos.

 

 

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Um mestre, porque conhece a fala dos mais antigos e repassa esse saber para os mais novos. Porque já caminhou entre terras de parentes a trocar remédios e sonhos. Porque é canoa de rio que aproxima margens: o JURUÁ (6) do indígena, a escola Guarani da universidade urbana, o avô da criança.

 

Pedro Luiz Macena existe em relação: ele é seguidor e aprendiz do XERAMOI (7), professor e educador Guarani para as crianças, um contador das histórias de seu povo. Ele é tão patrimônio vivo quanto tudo o mais que o cerca: seus deuses, seus parentes, seus ancestrais, o sol, o vento, as folhas. Seu saber não existe de forma isolada: somente sobrevive se há interação com o que é natural.

 

No cotidiano, ele está sempre emaranhado com outros seres e sons, tal qual a arte que faz: aquela que chamamos artesanato. Sua voz rende mais ensinamentos do que caberiam em seus 51 anos do que entendemos ser uma vida. Este é um mestre que não está sozinho. São seis filhos, uma centena de alunos, todos os Guarani de São Paulo, a maior reserva indígena do Paraná, uma nação Mbya, os povos indígenas.

 

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E quanto mais quieto está o Karai, é porque mais acompanhado. É no silêncio que ele costuma conversar com NHANDERU (8). Pergunta sobre como traduzir os mundos e como ensinar o não-indígena a aceitar o diferente. Abre seus sonhos e pensamentos como rascunhos de aproximação e diálogo.

 

 

KYRINGUE: criançada

 

 

Ser pequeno é alegrar-se

com o presente.

Maiores são a natureza e o seu tempo,

nós só estamos.

 

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No centro, em movimento, em quantidade: a expressão do espontâneo e do afeto. Desprovidos dos limites que marcam o sim e o não, o urgente e o desnecessário. Os alunos de Pedro Karai são guias de sua cultura. Foram os nossos professores, barquinhos de brincadeiras que nos fizeram adentrar pela Tekoa Pyau.

 

 

“ONHEVANGA!” (9)

 

 

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As crianças na aldeia nos deram aulas de abraços, de mãos dadas, de deixar levar: para brincar, para provar, para conhecer. Nelas, estava o Pedro. No Pedro, a presença delas. Coisa de juruá é mesmo tentar traçar fronteiras: ir e vir, trocar, construir, interferir. Essas são maneiras de Guarani ensinar, são modos indígenas sobre viver.

 

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O tempo, como menino, também é: o há-pouco e o daqui-a-pouco não ressoam nos gestos. É. O mágico é a realidade.

 

 

“Onde você catou a pedra do seu colar?”

 

 

Suas perguntas são respostas.

 

 

TEMBI´U: alimento

 

 

Nutrimos a terra de cimento

e os dias de regras.

Seguimos sedentos de energia

com fome de rituais.

 

 

É o rio que nasce no pico do Jaraguá em frente, a água que tenta resistir escondida em nossos dias. É qualquer verde que sobrevive ao cinza: e basta andar por São Paulo com sensibilidade para se lembrar que estamos em Mata, Atlântica. Cultura e alimento em mercados, em trocas milenares, na caçamba dos caminhões que passam pela Bandeirantes, vizinha às terras da Tekoa.

 

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A terra é o corpo: não há distinção entre o toque da pele e a casca do alimento. Entre o tecido que veste e a gente que se nutre de rituais cotidianos. Dançam, em rodas e ao som das rabecas: o mate, as batatas, o milho. E pelo cuidado que prima pelos detalhes e pela salvaguarda de cada passo, e pelo respeito ao tempo que é lua e vento… que a comida torna-se força.

 

Em uma aldeia sem condições de plantio, é no Mercado da Lapa que Pedro busca alimento e é com os parentes que chega o que lhe é sagrado: o milho Guarani é relíquia de ancestrais, as raízes são cultivadas ainda que em memória: guardados em estado de arte.

 

 

HETÃ: cidade

 


Marcada no mapa:

para encontrar, para trocar.

Olhar para dentro, olhar para o lado:

sobre com viver.

 

 

É como água de rio que tentaram silenciar, às margens de “nossas” histórias. Como a palma de suas mãos, as mesmas sujas de terras, marcadas pelo fazer artesanato: Pedro conhece São Paulo, mas a cidade teima em não reconhecer o Karai.

 

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Seus artesanatos fazem a paisagem do Anhagabaú, da Sé, da Luz. Anda pelas trilhas do Jaraguá e pelas gramas do Ibirapuera. Está sentado ao teu lado na estação Barra Funda.

 

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Ao teu lado.

 

Ele te percebe, te olha, pede a Nhanderu para te proteger. Mas você não o sente, não entende. Não-Guarani como eu: segue a viver, só.  

 

Se a cidade desaprendesse a ser ponto no mapa, se os encontros se permitissem trocas de fios…

 

Todos os dias, estamos prestes a costurar um novo desenho de nós. Se amplificarmos, talvez ecoem outros sons que pulsam com vontade de nos despertar.

 

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Escuta.

 

Aprendizado.

 

 


 

GLOSSÁRIO

 

(1) KARAI: líder espiritual. Esse é o nome de Pedro Luiz Macena em Guarani.

 

(2) Trecho do poema Canção Peregrina da autora indígena potiguara Graça Graúna.

 

(3) Todas as palavras em Guarani utilizadas neste texto foram pesquisadas no livro Vocabulário bilíngue Guarani – Português, Português – Guarani. Uma publicação das Aldeias do Estado de São Paulo e da Secretaria da Educação do Estado, do ano de 2010, como parte da Formação Intercultural Superior do Professor Indígena – FISPI.

 

(4) OPY´I: casa de reza Guarani. Reformada durante vários meses de 2016, acompanhamos em imersões a evolução da obra e, no último dia de visita à aldeia, conversamos com o Pedro dentro da edificação que era preparada para receber, nas semanas seguintes, o ritual do mate, que é algo como a celebração do ano novo Guarani.

 

(5) TEKOA PYAU: nome da aldeia onde mora o Mestre Pedro Luiz Macena, no Jaraguá, em São Paulo. A tradução para o nome é Aldeia Nova.

 

(6) JURUÁ: não indígena; branco; europeu.

 

(7) XERAMOI: antepassado sábio, líder espiritual. Na aldeia Tekoa Pyau, o Xeramoi é uma das principais lideranças espirituais do povo Guarani: José Fernandez. E foi para segui-lo que Pedro veio para essa terra.

 

(8) NHANDERU: o Deus maior do povo Guarani.

 

(9) ONHEVANGA: chamado para brincar.

 


 

TERRITÓRIO

 

Pedro Luiz Macena nasceu na Terra Indígena Rio das Cobras, em 1965, entre os municípios de Laranjeiras e Espigão Alto do Iguaçu, no Paraná, em região de fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai.

 

Rio das Cobras é uma reserva que foi criada por decreto do governo federal no ano de 1901 e é formada por uma área com cerca de 19 mil hectares onde moram hoje aproximadamente três mil indígenas dos povos Kaingang, Xetá e Guarani. Essa é atualmente a maior reserva indígena do Paraná, estado onde a população indígena cresceu cerca de seis vezes nos últimos 30 anos. Nas terras da reserva, existe grande diversidade de famílias que cultivam principalmente milho, batata-doce e mandioca em roçados. Também é comum o chamado artesanato de palha e seus trançados e as artes feitas em esculturas de madeira.

 

Pedro Macena é integrante do povo Guarani Mbya, família linguística Tupi-Guarani e idioma Guarani. Em 2008, eles eram cerca de sete mil pessoas segundo censo realizado no ano; hoje estima-se que sejam mais de 27 mil indígenas. Uma das principais características deste povo é a sua mobilidade como consequência de seus processos de trocas e visitas constantes a parentes. Por esse caráter móvel, é um desafio compreender a sua dimensão populacional e territorial.

 

Pedro chegou em São Paulo em 1972 com seus pais, morou durante alguns anos na Aldeia Tenondé Porã e atualmente mora na Aldeia Tekoa Pyau, ou Aldeia Nova, na região do Jaraguá, extremo norte da cidade. Em terreno urbano com cerca de 150 mil m2, a área habitada pelos indígenas está nas margens da Rodovia Bandeirantes, exatamente em frente a um dos principais pontos turísticos de São Paulo: o Pico do Jaraguá, com mata, trilhas naturais e vista privilegiada para a cidade. Apesar de esse ser um ponto de grande circulação para prática de esportes, entretenimento e turismo, poucos são os moradores de São Paulo que sabem sobre a existência do povo Guarani na região.

 

A formação da Aldeia Tekoa Pyau está intrinsecamente relacionada à chegada do líder espiritual Xeramoi, o pajé José Fernandez, ao território. Reconhecido como um dos principais guias espirituais do povo Guarani Mbya, ele foi morar no Jaraguá após um período em Ubatuba e, quando decidiu fixar sua moradia no local, muitas famílias indígenas decidiram também mudar-se para a nova aldeia. Esse foi o principal motivo de deslocamento do Karai e sua família para Tekoa Pyau, já que há alguns anos ele seguia os passos e ensinamentos do Xeramoi.

 

Na aldeia não há plantio ou cultivo, uma vez que a área é muito pequena e completamente ocupada pelas casas das famílias. A ausência dessa prática é uma das principais queixas dos indígenas com relação ao território. Mas ainda que não consigam plantar e colher milho e erva-mate, culturas típicas Mbya, os moradores da aldeia continuam fazendo as práticas rituais relacionadas a esses alimentos. A situação do terreno é de terra reservada indígena, o processo total de homologação do território ainda está em trâmite.

 


 

SABER

 

Pedro Macena é líder cultural, foi escolhido pelo seu povo como um dos disseminadores do modo de vida Guarani principalmente para crianças e não indígenas. No CECI Jaraguá – Centro de Educação da Cultura Indígena, escola organizada pelo governo municipal, FUNAI, indígenas e voluntários que fica localizada dentro da Aldeia Tekoa Pyau no Jaraguá em São Paulo -, ele é um dos principais professores de costumes indígenas: a língua, a arte e a culinária Guarani Mbya.

 

Em busca da terra sem males (yvy marãey), os Mbyá se deslocaram do território sul (incluindo regiões da Argentina, Uruguai e Paraguai) principalmente para São Paulo e Rio de Janeiro, chegando a ocupar áreas do litoral desses estados. Por essa característica, o povo Guarani mantém e salvaguarda seus costumes através de uma rede de reciprocidade, trocas de objetos e rodas de saberes entre parentes: os ensinamentos são transmitidos e preservados por meio da oralidade.

 

A língua é o mais forte elemento da identidade do povo Guarani Mbya, e é por isso que  a transmissão desse saber para as crianças é uma prioridade nas aldeias. O dilema entre o Guarani falado e escrito é uma constante para educadores indígenas e não indígenas, isso porque a entonação de uma palavra em Guarani  (que, mesmo sendo escrita como um único vocábulo, é muitas vezes uma frase ou expressão composta por várias outras palavras) é, na verdade, uma parte inerente da linguagem: de acordo com a pronúncia, o que é dito pode se referir a significados muito diferentes.

 

Pedro Macena é um mestre em linguagem Guarani, responsável pela troca de saberes entre parentes, salvaguarda do idioma através da transmissão para crianças e aproximação de mundos por meio da tradução (de falas, livros, vocábulos, situações…) entre indígenas e não indígenas. Pedro também conhece e transmite a linguagem ritualística Guarani, normalmente traduzida como “as belas palavras” e empregada principalmente em rituais espirituais na casa de reza e transmitida dos líderes mais velhos para os mais novos de uma aldeia.

 

O artesanato foi uma atividade incorporada pelo povo Mbya ao longo dos anos, sendo que a produção é sempre de propriedade de toda a família e não de um indivíduo. Essa atividade gerou o sustento da família de Pedro Macena em seus primeiros anos em São Paulo e estimulou que ele circulasse pela cidade para vender as suas peças em praças e metrôs. Hoje ele transmite esse saber nas aulas de arte para as crianças da aldeia. A renda gerada pela venda das peças, em sua maioria colares de sementes que são compradas ou doadas por parentes, é distribuída por toda a aldeia.

 

Falar sobre culinária como um saber Guarani é falar também sobre o papel estrutural da agricultura no modo de vida desse povo. Cultivar – terra, alimentos, refeições – é, para eles, se organizar. Com a reciprocidade presente na troca de alimentos, revelam-se os rituais de celebração e passagem dos ciclos. O milho Guarani, a batata-doce e o mate são alimentos presentes nos rituais e refeições da aldeia. Na sala de aula e na cozinha, Pedro transmite para as crianças os modos Guarani de pensar e fazer culinária.

 

Além das atividades para as crianças da aldeia, Pedro também recebe outras crianças indígenas nas suas aulas. O Karai constantemente participa de palestras e cursos sobre o povo Guarani em encontros não indígenas.

 


 

 

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