Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

As anáguas de Ducineia

Em11-11-2016

 

(Rainha Nega Duda: força da natureza, dendezeiro ancestral.)

 

Por Joana Côrtes.

Vivência e pesquisa: Carolê Marques, Gleice Bueno, Joana Cortês, Thaisa Figueiredo.

Produção coletiva, fruto da residência Os Brasis em São Paulo.

 

Ducineia quando anda faz barulho de mar.

 

São sete as anáguas que a cobrem, em dia de celebrar o fogo, o couro, a roda.

 

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Uma por uma, veste-se de camadas brancas, o tecido feito do mesmo das sacas de farinha de fazer pão em São Francisco do Conde, de onde vem o seu umbigo, o nó das mãos bem dado à altura da cintura. O som vem de dentro, azul, das águas salgadas de onde ela nasceu tão de junto – a duzentos metros da sua casa de número 02 desde 13 de maio de 1967, é o mar.  

 

Em dia de festa, de Caruru de Sete Meninos, de samba de roda, dos tambores do Ilú Obá de Min, as sete anáguas de Ducineia se alvoroçam, se esfregam e dançam umas com as outras, fazem espumas em areia escura, o corpo negro. Transbordam na saia rodadíssima, maré cheia,  reina a rainha e o seu balaio, cabeça coroada feita para o mundo: Ducineia rebenta em Nega Duda.

 

Acontece que chegar na Bahia procurando a Nega por Ducineia ou por Nega Duda é o mesmo que nada. As saias que a cobrem carregam quantos outros nomes conhecidos e guardam muitas tantas mulheres anônimas. Lá, ela é Nega de Dete, a neta de dona Buzu, a mãe de Jackson e Jaqueline, a filha de dona Aurinha do Terreiro Angurusena Dya Nzambi, a irmã mais velha dos seus seis irmãos carregados nas suas ancas de menina: Jaciara que é Jaciara mesmo, Mineira que é Maria de Fátima, Jacó que é Jorge, Bibico que é Vinícius, Cabeção que é Carlos Augusto e Jean que é Jean mesmo, a caçula.

 

Sua língua cresce ao lamber nome por nome os seus, os que vêm antes de si. É uma maneira de se colocar no mundo pelos outros que a compõem, matéria comungada, sedimento reconhecido do mesmo chão à boca, sotaque. De modo que, antes de aprender iorubá ou o idioma dos peixes que o avô materno pescava, a língua da Nega aprendeu a dizer o que os ouvidos não esquecem, as suas vozes antigas de mulheres da cultura negra, as da família – de casa e de santo – e as das cantigas dos sambas de roda. Lembrá-las e honrá-las, ser dada a passar adiante o aprendizado que a atravessa, é uma forma de resistir e seguir viva. É como se a língua só tivesse para onde ir porque sabe de onde veio, o sentido, fronteira mestra.

 

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Acontece também que chegar na casa dela em São Paulo, cidade onde vive desde 2004, tocando a campainha, é, sina repetida, o mesmo que coisa nenhuma. Nega é mulher de interior, recôncava, profunda, arrodeada de sal, pedra, planta, metal, contas vermelhas e brancas, livros, livros, livros, panos de algodão, cominho, anis estrelado. Mora numa casa de meio, entre a da frente e a dos fundos, e se faz nos quintais, nos terreiros, nos jardins descalços. É mulher do perto, de dentro, implícita. É preciso palma com palma, as mãos quentes, batê-las, para ser atendida e recebida, visita benfazeja, tamburete estreito, sua bênção dona da casa que vou lhe adentrar.

 

 

O calor pronunciado de Xangô

 

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Quem abre os caminhos por onde seus pés irão passar são as mulheres que a antecedem: a avó Buzu que era Maria Andreza, a mãe Dete de Xangó que era Hildete e a mãe de santo Aurinha, que ainda é, vivíssima, dona Áurea Medeiros, 84 anos, ialorixá do terreiro de candomblé de Angola Angurusena Dya Nzambi, com 48 anos de vida religiosa.

 

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O samba de roda e o amor pela feitura da comida chegam juntos à Nega pequena pelas mãos da avó Buzu, que era Maria Andreza e teve mês certo para nascer: batia mês de setembro quando São Cosme mandou fazer duas camisinha azul, no dia de festa dele, São Cosme quer caruru. Vadeia Cosme e Damião na areia, vadeava toda a vizinhança no quintal da avó, o samba comendo solto, depois que subia o cheiro de caruru da cozinha e as crianças eram e ainda são servidas primeiro, baba de quiabo confessa na boca, os dedos melados de dendê.

 

 

“Sou de cidade do interior. Minha infância não teve muito brinquedo. É caruru, é reza, ladainha, procissão. O samba entra na nossa vida de forma muito natural, é quase orgânico. Essas músicas a gente ouve desde pequeno. Porque tudo que tem, tem samba. O primeiro samba que eu fui deve ter sido na casa da minha avó porque  fazia caruru para Cosme e Damião. E todo caruru de Cosme e Damião tem samba de roda”. 

 

 

Rezar e festejar, comer e sambar, tudo misturado como manda a tradição. Tudo batido no pilão: amendoim, castanha, camarão, até virar pó. A mão criada com peso, tachos e panelas grandes para cozinhar e dar de comer para os irmãos todos de casa, e mais adiante para cinquenta, em dia comum, e para lá de cento e cinquenta pessoas, nos dias de festa no terreiro e nas feijoadas de novembro do bloco Ilú Obá de Min. A comida para Nega é, portanto, ligação fortíssima com calor pronunciado, prazer, fartura e devoção.

 

Em treze anos na cidade de São Paulo, este setembro foi o segundo que Nega ofertou o caruru de Cosme e Damião. O ensinamento de dona Buzu de preceitos e resguardos e disciplina e banhos matinais permanece: cortar quiabo é dádiva compartilhada e confiada a muito poucas mãos. Só vai quem se quer permitido. E se falam e se escutam as conversas cúmplices, inaudíveis e irresolutas: do santo de cabeça aos mapas astrais, do barulho ao se cortar quiabo duro e que é por conta desse barulho – imagine só! – que já se sabe que não presta. Quem fica para o final da cortada segura o que há de subterrâneo profundo, só o convívio dá o segredo das coisas: é necessário conceder alma ao indigente, saber que do camarão salgado só não se aproveita o olho, de que para o amor não há encomenda, tem que saber sentir e esperar a própria força do encontro puxar.

 

Caruru bom é o que fica antes com os quiabos cortados numa bacia gigante a dormir no serenado. O descanso entre, o suor adormecido, o respeito aos tempos das naturezas das coisas, sim!, a obediência ao desejo dos grandes relógios naturais.

 

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O fundamento vem, antes de tudo, pelos olhos da observação e pelo silêncio atento. Alcançou vistas nos terreiros de Cachoeira e São Félix, com sete, oito anos, levada pelas íris autônomas da sua mãe Hildete que era Dete de Xangó – Xangó dos moios de peixe que levam este nome e que dona Dete botava a meninada toda de casa para ajudar, cortar o peixe, tirar a espinha, vender moqueca. A mãe não sabia ler nem escrever, botou os olhos da filha para percorrer as casas do povo de santo e anotar tudo o que visse e ouvisse, novos antigos saberes ancestrais.

 

“A religião veio com minha mãe. Porque ela não era filha de santo de ninguém, ela não tinha casa nesse sentido, mas ia nos terreiros e me levava e pedia para eu anotar tudinho. Por isso quando fui para a escola eu já sabia ler e escrever. O maior legado que minha mãe me deixou é a batalha. É você ser o que você quer ser. Ninguém pode lhe impor o que você quiser ser”.

 

Guerrear é com a Nega mesmo, o machado duplo tatuado no antebraço esquerdo, o dorso da mão esquerda marcada em fogo, resistências visíveis. Desde quando todos os alumínios e panelas da casa de gente rica areada por seus dedos de criança em troca de duas revistas que deveriam ser lidas no próprio local; desde quando empregada doméstica, aos treze; desde quando mãe de Jackson e Jaqueline, aos dezessete; desde quando água fervente nas costas do macho que queria fazer ela de tapete, mãe solteira aos vinte.

 

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Na trincheira contra o racismo, a servidão e a opressão, na luta por ser sujeito e não objeto: a busca por conhecimento nos livros e nas conversas e encontros com outras mulheres, a troca compartilhada de saberes da cultura negra brasileira e o percurso espiritual trilhado, eis do que é feita a madeira de lei das suas armas e instrumentos, descobertos pela Nega, no seu caminho por outras possibilidades de narrativa e realização da sua própria existência, liberdade.

 

Cajado negro, dendezeiro ancestral, força da natureza.

 

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Sua iniciação religiosa no candomblé veio muito depois dos olhos acompanhados pela mãe Dete aos terreiros do Recôncavo baiano. Ducineia que é Nega de Dete, que é mãe de Jackson e Jaqueline, bota seus direitos no balaio aos 25 anos e se torna Bayrangi, seu nome de batismo do terreiro em São Francisco do Conde. Sua cabeça é feita para Xangô, o orixá do fogo, da Justiça, senhor das Pedreiras, kaô kabecilê. No terreiro da sua casa, Ducineia é filha de santo de mãe Aurinha, o nome que ela leva escrito em caneta azul no desalinho de uma das suas sete anáguas quando sai para sambar e cantar pelas ruas e salões e rodas da Desvairada.

 

Confirmada como Makota de Caboclo, escolhida para cuidar dos deuses e deusas dentro do terreiro, zeladora dos orixás. O orgulho da sua origem negra e a voz do seu canto vem se fazendo assim, atravessa sua caixa sonora, aparelho fonador, nas respostas puxadas pelos sambas de roda, nos ensinamentos das rezas dentro do terreiro da sua casa, onde se reza para tudo: para comer, para deitar, para festejar, para tomar banho.

 

O canto é sua reza, a fé, o recolhimento, o aprendizado, o corpo transcendendo, o rodopio pleno, a celebração de vida. O respeito aos que nos antecederam e o ensinamento aos que virão.

 

“Como eu sou Makota, tudo o que me é passado eu tenho que ensinar aos que vão vir depois de mim. A minha mãe de santo ainda é viva, Áurea Medeiros, tem 84 anos, e eu tenho o maior orgulho de falar que ela é uma mulher que ensina. A primeira vez que vim para São Paulo vim com ela, tinha 23 anos e tive oportunidade de ficar e conviver por um ano e meio. Aprendi muita coisa com ela e essas coisas a gente não esquece”.

 

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Nem conta. Dos preceitos, dos cuidados, das defumações, dos sacudimentos, das limpezas, dos benzimentos. De compreender as virtudes das folhas, do sentimento vertebral das águas de cheiro, do poder das cinzas e do breu iluminado do fogo. Do estudo da braveza dos metais, dos mistérios das ervas, das soluções minerais, das melodias espirituais dos animais. “A magia começa aqui na cabeça e quando você pensar em fazer já começa a ser. Se você botar fé em uma árvore, árvore ela já será”.

 

 

O Ilú da rainha Nega Duda

 

Vento vira, tempo muda, bons ares irão balançar a copa dessa árvore frondosa e a levar para clarão além-mar, Montpellier, sul da França. Era maio de 2003, brisa prazenteira e uma comitiva de franceses visitam São Francisco do Conde e a escolhem entre sessenta mulheres do Lindro Amor – bloco folclórico do seu terreiro – para integrar como sambadeira uma comitiva de artistas populares no Festival Printemps des Comédiens. Um mês em um festival de primavera, a conviver com mais 36 artistas brasileiros, a trupe encantada: mestre Salustiano e sua família pernambucana de rabequeiros do maracatu rural e cavalo-marinho, a sambadeira Rita da Barquinha, de Bom Jesus dos Pobres, também do Recôncavo, a percussionista Elizabeth Belisário, a Beth Beli, mais tarde fundadora do Ilú Obá de Min.

 

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Sopro forte, ir, verbo no caminho do infinito.

 

“Viagem da minha vida, maravilhosa. Foi a primeira vez do meu contato com o microfone e foi onde começou essa coisa de ser artista e da aproximação com outros artistas. Até então não me considerava, só sabia que sambava no terreiro da minha casa. Eu era muito muito muito tímida, andava de cabeça baixa. Sou baiana, mas não vim com essa auto-estima, nunca tive, eu fui aprendendo a ter e trabalhando ela. Nas apresentações, a Beth Beli e a Rita da Barquinha me deram muita força para cantar. Sempre me achei uma mulher feia, essa coisa de se achar fora dos padrões. Durante a viagem o povo vinha e falava “ah, você é bonita, hein!”, eu achava que estavam mangando de mim”.

 

A voz de peito da Nega troveja, estrondo para o mundo, nasce o seu cantar. A cabeça a ser erguida, o princípio, início do seu percurso de se descobrir na própria força de ser mulher negra artista brasileira.

 

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Novos ares, a viração, correnteza de rio que não vai se acalmar. “A única virada nesse momento foi na cabeça. Porque conheci gente de várias etnias, convivi com todas essas pessoas que contaram coisas delas, eu contei coisas minhas. Chego lá na minha cidade de volta: ai que mundinho pequeno, quero não”.

 

Como se ir fosse necessário para voltar, Ducineia deságua em São Paulo, cidade grande, leito vasto de rio. Era 01 de novembro de 2003. Leva consigo na barra da sua saia, nascente e foz, São Francisco do Conde. Aqui o seu estuário é de outro tipo de grandeza: é gente, é gente, é gente, é casa dos outros para cuidar, é mundaréu da rua, é samba de roda em boteco, é noite perdida, é grana para mandar pros de casa, é geleia de banana com chocolate, é saudade do seu terreiro, é maré seca, é oficina sobre a culinária dos livros de Jorge Amado, é bater de pernas na 25 de março, onde se encontra de tudo, “onde as cobra se esconde”, é lonjura e trem e metrô e ônibus e vai e volta por mais de duas horas até Cidade Tiradentes, a mesma distância de lá para cá, é daqui para lá, periferia.

 

Viver a cidade é compreendê-la, as pernas colocadas nas ruas, navegação urbana.

 

É maré cheia, é Ilú Obá de Min, divisor de suas águas. O bloco de mãos femininas que tocam tambor para o rei Xangô. O poder da transformação profunda atravessa o corpo a voz as mãos os olhos o umbigo os pés a cabeça de Ducineia. Surge o Ilú, surge Nega Duda.

 

 

A Nega a mesma, mas já outra

 

“O Ilú é a minha base. O Ilú me dá esse empoderamento, traz a força que estava dentro de mim e de todas as mulheres que conheço nele. Todo ano o bloco homenageia uma mulher, uma guerreira, uma ancestral, viva ou que já. O primeiro ano do Ilú foi sobre a rainha de Nzinga. Aos 37 anos, ganho um livro sobre ela e descubro pela primeira vez que existe uma rainha negra. Aí nasce a minha primeira composição. A rainha de Nzinga me emociona, mas na composição o que eu vejo é o bloco, eu nunca tinha visto o que é a força dessas mulheres tocando tambor, compondo, fazendo música, cantando”.

 

De setembro a fevereiro, há doze anos, o Ilú Obá de Min se revela por dentro, nos ensaios no miolo do centro de São Paulo todos os fins de semana, no Vale do Anhangabaú. São cem, duzentas e vinte, mais de trezentas mulheres, com suas peles e cabelos e tecidos e sorrisos e falanges e dores e joelhos e quadris. Tocam seus agogôs, xequerês, djembés e alfaias e cantam e dançam, formam um só corpo, diverso, corda vocal negra ecoando, a diáspora africana em nós. Nega Duda e um coro de mulheres a trovejar dendê nos ouvidos das gentes pelas ruas da cidade até o fim do cortejo na noite de sexta-feira de Carnaval, a dispersão sempre em frente à Igreja dos Homens Pretos, no largo do Paissandu.  

 

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A cada ano, ensaios e repertórios, a possibilidade de encontros e de conversas e de trocas de saberes com outras mulheres negras, de abrir e compartilhar os processos internos de traumas e de amadurecimento, de ressignificar os imaginários, de descolonizar pensamentos e esteriótipos, de criar resistências e ocupar espaços de poder, de combater racismos, de pesquisar o conhecimento que nos foi negado durante séculos sobre a riqueza da cultura afrobrasileira.

 

As mãos de Nega se encontram com os tambores de Beth Beli e de poucas que irão ser tantas outras mulheres, alfabeto feminino completo, que fundam o Ilú e saem em cortejo em 2005. A cada carnaval, a oportunidade de se reencontrar com a própria história, de se fortalecer e se reconhecer com outras tantas trajetórias de brasileiras. O seu umbigo pelo umbigo da rainha de Nzinga, da cantora Leci Brandão, da ativista Raquel Trindade, da escritora Carolina Maria de Jesus. Em 2014, foi a vez dos tambores homenagearem a sua própria história pelas ruas de São Paulo.

 

A força bruta e invisível, pura, ancestral, arrebatadora, livre, imaterial. O asé do Ilú da rainha Nega Duda. “Eu só sei da minha força e a reconheço quando abraço outras pessoas. Com o Ilú aprendi também que o bom de ser múltipla é que se pode ser uma a cada dia”.

 

Com seu torso amarelo, balaio cheio de fitas na cabeça, os braços abertos em rodopio, o samba no miudinho, Nega nos diz com os olhos em silêncio que são tempos como os de sempre e mais do que nunca: vamos todas aprender juntas. As mais antigas ensinam quem vai chegando. Levantam as mãos acima da cabeça, campo visual limpo, para mostrar maneiras de se fazer, os guizos ritmados. As palmas das mãos que quentes, todas juntas, cada um a seu jeito, solidárias, crescem, puxam o canto, e riem, e sacolejam a barra da saia, e acertam o passo, atentas a quem entra na roda, ao modo da pisada, do batuque, do corrupio, a vida celebrada vibrando nas canelas.

 

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A lição-mestra da vida, Nega sabe: continuar aprendendo e trocando sempre, todos os dias. Com as pessoas, com os livros, com as plantas, com as novas aulas de kimbundo, com o encontro nas rodas de samba e nos cantos da cidade. Seguir a firmar intuições e incentivar vocações, consciente da sua beleza. Lavrar o ensinamento, honrar o fundamento e voltar para a Bahia. Quando a maré vazar, a avó Ducineia quer ir umbigar os seus e cantar que a flor de laranjeira cheira mais que aroeira para os quatro netos: Erik Raphael, Jackson Filho, Kamili e Gabriel.

 

“Leia, estude. Não leia só os livros da escola. Leia outros livros. Ouçam os seus avós, peça para eles contarem histórias para vocês, a história deles de antigamente, dos antepassados antes deles que eles se lembram. Marquem tudo isso, guardem tudo isso, não deixem só na memória. Valorize o povo da sua terra, valorize o chão que você nasceu”.

 

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Tronco de generosidade largérrima, com raízes de sabedoria ancestral, com caules que cuidam dos que estão em torno. Ducineia Nega Duda Bayrangi Cardoso quando canta faz barulho de mar, está coberta de sal e é uma árvore bonita.

 

São sete anáguas no seu ventre e incontáveis sementes quentes ao redor.

 

 


 

TERRITÓRIO

 

O Recôncavo tem importância fundamental na formação política, social e econômica do Estado da Bahia. Foi lá onde se concentrou a grande massa de escravos negros que chegavam traficados de África até Salvador, desde a segunda metade do século 16. Durante o século 17 já eram majoritários.

 

Não há cifras exatas de quantos foram transportados de África até a Bahia por séculos durante o ciclo de tráfico da Guiné, de Angola e da Costa da Mina (região do golfo do Benin), mas no clássico O negro na Bahia, o autor Luiz Vianna Filho estima que, no mínimo, um milhão e cem mil negros escravizados tenham chegado até a Bahia, quatro milhões e trezentos mil em todo o Brasil.

 

No Recôncavo, trabalharam nas plantações de fumo e principalmente de cana, que dominam até hoje a agricultura da região. Espalharam seus suores e gemidos, suas cantigas e seus ensinamentos ancestrais pelas senzalas, pelos campos, pelos terreiros de matriz africana de nações com diferenças rituais e no vocabulário (Angola, Ketu, Jeje, Ijexá).

 

A região é responsável também pelas principais referências culturais, artísticas e, por assim dizer, pelo ethos atribuído, fora e dentro do Estado, ao povo baiano. Reúne 33 municípios, totalizando 10.015 km2. De acordo com o IBGE, estes municípios totalizam 3.536.220 habitantes, o que corresponde a 25% da população do estado numa área de pouco mais do que 1% do território estadual. O município de São Francisco do Conde, onde Nega Duda nasceu, tem 30.069 moradores. A casa de número 2 da rua onde ela nasceu, ainda está por lá, a 200 metros da beira-mar.

 

Geograficamente, o Recôncavo é “a faixa de terra que contorna a baía de Todos os Santos, formada por mangues, baixas e tabuleiros. Economicamente, está dividido em duas regiões distintas, uma compreendendo a Região Metropolitana de Salvador e a outra chamada Recôncavo Sul, incluindo, além dos municípios tradicionalmente identificados como do Recôncavo, aqueloutros que constituem o vale do Jiquiriçá”, é o que diz o dossiê do Iphan elaborado para reconhecer o samba de roda do Recôncavo como patrimônio cultural, em 2004.

 

As principais atividades econômicas são: extração de petróleo e indústrias da área petroquímica, além do cultivo da cana de açúcar e do tabaco. As principais cidades da região: Nazaré, Cruz das Almas, Amargosa, Santo Antônio de Jesus, Cachoeira e Santo Amaro.

 


 

SABER

 

Uma por uma, as sambadeiras vão se colocando no centro do círculo formado por outras mulheres que cantam e batem palmas ao seu redor. Essa coreografia frequentemente improvisada se baseia nos movimentos dos pés, das pernas e dos quadris. Com cantos, toques, umbigadas e o passo no miudinho, é assim que o Samba de Roda do Recôncavo Baiano é reconhecido como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, desde novembro de 2005, pela Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

 

O samba de roda ocorre em todo o estado da Bahia, mas concentra-se especialmente nos municípios que se estendem em torno da baía de Todos os Santos, conhecida como Recôncavo. Surgiu no século 17 e vem das danças e tradições culturais dos escravos africanos que chegaram na região onde ficam Cachoeira, São Félix, Santo Amaro, Bom Jesus dos Pobres e São Francisco do Conde, a terra da Nega Duda. Contém também elementos da cultura portuguesa, como a língua, a poesia e alguns instrumentos musicais.

 

O pandeiro, o prato-e-faca, os atabaques e a viola machete – um tipo de 10 cordas, dispostas no corpo do instrumento em 5 duplas de cordas, com tamanho bem menor e timbre mais agudo do que o violão – são alguns dos principais instrumentos utilizados durante as rodas.  No caso do samba de roda da Nega Duda, devidamente registrado entre um dos aproximadamente 120 grupos da Associação de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba), os instrumentos mudam um pouco: sai a viola machete, entram o xequerê e o pandeiro quadrado.

 

Pode ser realizado em associação com o calendário festivo – caso das festas da Boa Morte, em Cachoeira, em agosto, de São Cosme e Damião, em setembro, e de sambas ao final de rituais para caboclos em terreiros de candomblé. Mas ele pode também ser realizado em qualquer momento, como uma diversão coletiva, pelo prazer de sambar.

 

De acordo com o dossiê realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) para registrar o samba de roda do Recôncavo como patrimônio cultural brasileiro, em 2004, há dois principais tipos de samba de roda: o samba corrido e o samba chula.

 

No samba corrido, dança, canto e toques acontecem simultaneamente, podendo sambar uma ou várias pessoas ao mesmo tempo no meio da roda. No samba chula apenas uma pessoa de cada vez samba e o canto e a dança nunca acontecem ao mesmo tempo.  Em outras palavras, o samba corrido é mais livre, mais permissivo; ao passo que o samba chula é mais exigente, mais rigoroso.

 


 

 

Comentários

  1. Teo Ponciano disse:

    Lindo e forte. Axé!

  2. Micha Nunes disse:

    Nega Duda é maravilhosa. Privilégio viver pertinho dela. Aprendizado de amor,respeito e simplicidade. <3

  3. Carol Santos disse:

    A Nega é maravilhosa. Me representa. A bença, Mãe!

  4. Larissa Maranho disse:

    Nega sua presença me emociona, máximo respeito. Que trabalho maravilhoso, parabéns! Axé.

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