Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Retrato Falado 12: Zelito

 

RF12_Zelito

 

Retrato Falado: instantâneo em forma de texto

 

Barco, em Cajaíba, parece que já nasce com vontade de zarpar. Não tem proa na orla que não desponte já apontada pra Baía de Camamu, recôncavo salobro do sul baiano onde tudo quanto é tipo de peixe vem fazer da água morna criadouro de população. Cajaíba também é berçário, mas de naus. São pra mais dúzia, as quilhas todas enfileiradas na única rua da vila, entre o dendê e o mar, onde a praia virou estaleiro para que os homens se dediquem ao partejamento dos barcos. Zelito é o mestre. O mais velho dos velhos. Não foi o primeiro, mas aprendeu com quem foi: um certo Roberto, chegado de longe, que se metera a fazer saveiro às escondidas, pra ninguém imitar. Zelito, rapazote ainda, foi lá ser ajudante. Virou carpinteiro também. Depois os vizinhos: “Pessoal aprendeu olhando o outro fazer. Quando pensa que não, a profissão virou professora pra todos aqui”. No começo era tudo saveiro, desses que enfeitavam o cais de Salvador. Quando as estradas começaram a matar as velas, Cajaíba virou especialista em escuna. Graúdas, algumas – mais de vinte metros de comprimento talhados na madeira, da quilha ao mastaréu. Antes nem plaina tinha: um barco se paria na base do machado e do enxó. E debaixo do sol, que botar teto era caro. Sombra e máquina agora apressam a nascença das naves: se antes levava-se mais de ano pra ver a escuna zarpar – dois, três anos, às vezes –, agora em poucos meses já tem barco no berço, à espera do novo pai. Aqui não se trabalha com encomenda: fabrica-se primeiro, vende-se depois. Chega o sujeito, se engraça, paga e leva. “Eu sou um analfabeto, mas sou professor”. Aí, quando vende, tem a “carreira”, que é a vila toda, parteira de mil mãos, se juntando pra botar o bicho no mar. Uns puxam, os outros empurram, e o barco vem à água como menino saindo do ventre. Quando a maré sobe, a proa já está no seu lugar, apontada pro mundo.  

 

Joselito Bento dos Santos, mestre-carpinteiro em Cajaíba do Sul, Bahia. Outubro de 2010.

 

(Foto por Valdemir Cunha.)

 

A editoria Dedo de Prosa traz histórias brasileiras inspiradoras, destacando as pessoas e seus ofícios. A seção Retratos Falados é feita por Xavier Bartaburu e traz seu olhar interessado pela beleza e sabedoria de gente simples que ele encontra em suas imersões pelo país.

 

Comentários

  1. maria de souza disse:

    não conhecia o site e fiquei maravilhada lendo um dedo de prosa.Trabalho com a alfabetização de adultos e nem preciso dizer que um dedo de prosa quando a aula começa é marcada pelas idas e vindas desse povo pelo chão de meu Brasil.Apaixonada pela leitura foi através de uma artigo de Leonardo Sakamoto que cheguei até vocês e agora não largo mais.Parabéns a toda equipe pelo belo trabalho em divulgar nossa cultura ,nossa gente
    abraço Cida

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