Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Retrato Falado 02: Otaciano

 

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Retrato Falado: instantâneo em forma de texto

 

Dizem que violeiro, pra ser bom, precisa de ajuste com o cão. Quem quiser a receita, que pergunte a seu Tácio: “Põe a mão em oco de igreja, na sexta-feira da Paixão, à meia-noite”. Batata: os dedos esticam, a viola afina e o camarada sai tocando o que nem uma vida inteira de estudo é capaz de ensinar. É o que o povo diz, mas seu Tácio mesmo nunca se atreveu a conferir. Fica até sério quando perguntam se já fez o acerto. “Moço: Diabo, se é que existe, eu nunca vi. Nem quero ver”. Prefere festa de santo, que é onde o tinhoso não entra. Todo ano, desde menino, campeia o sertão invocando santo e pedindo esmola pra fazer banquete em louvor a padroeiro. Vai de casa em casa, em plena cantoria, tocando tudo quanto é instrumento que aprendeu nessa vida: viola, caixa, sanfona e violão. Falou em folia, não tem pra ninguém. “Sei reis de quanto é divindade: São José, Nossa Senhora Aparecida, Divino Espírito Santo…”. De farra ele também gosta, mesmo quando não tem santo no meio. Vivia animando festa lá na vereda onde morava, pros lados do Rio Carinhanha. Foram cinquenta anos metido nas brenhas, e aí já viu: pra espantar a solidão, faz falta diversão. “Não deixavam eu ficar quieto. Amanhecia o dia e o povo dançando.” Ainda hoje, se tem rastapé, lá vai ele, que violeiro como seu Tácio não é do tipo que fraqueja. “Vou rompendo rumo. Só paro onde o sol entrar. Porque o senhor sabe: essa vida onde nós tá é emprestada.”

 

Otaciano Francisco das Neves, morador do assentamento São Francisco, município de Formoso, Minas Gerais. Julho de 2005.

 

(Foto por Valdemir Cunha.)

 

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