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Retrato Falado 01: Luzia da Cruz

 

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Retrato Falado: instantâneo em forma de texto

 

Dona Luzia da Cruz tem 12 filhos, 38 netos, 21 bisnetos e um apito. E basta um só pra comandar o povaréu que vem atrás, em procissão, dançando e engrossando o coro em louvor a São Benedito e Nossa Senhora de Fátima. Quase tudo é parente. “Só três que não”, avisa. “Congado meu é em família.” Vai daí que, quando a dona Luzia puxa a cantiga, todo o mundo emenda na cantoria. Só cala quando a mestra apita. E é assim por um par de horas: enquanto o povo se arrasta em cortejo, carregando andor e estandarte, dona Luzia vai engatando, por meio da voz e do sibilar, as muitas cantigas que a avó escrava ensinou. “Mas se for pra cantar o dia inteiro, nós canta. É um prazer que a gente tem.” Precisa ver: faz mais de cinquenta anos que a dona Luzia comanda o congado no bairro do Quilombo, todo dia 13 de maio. Quem trouxe foi ela mesma, vinda de Minas, certa de plantar festa de preto em chão paulista. Sim, porque congado é louvação nascida em senzala, ainda que benzida em igreja. Foi o jeito que a escravaria achou de adorar os reis lá deles de modo que os padres deixassem. Botaram santo no meio, virou festa. Rei e rainha agora são de mentira, mas a fé é de verdade. E será enquanto a dona Luzia viver. Depois, é com a criançada. Na dúvida, ela sempre dá um jeito de lembrar: “Olha, não deixa morrer essa festa não, viu? Continua com a semente dessa profissão nossa o dia que a gente faltar.”

 

Luzia Maria da Cruz, mestra de congado no bairro do Quilombo, município de São Bento do Sapucaí, São Paulo. Abril de 2012.

 

(Foto por Valdemir Cunha, publicada no livro Brasil Invisível. Edigora Origem, 2012.)

 

 

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