Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Ratão: Em Foto

 

 

Ratão Diniz tem dentro de si um desses meninos brasileiros que insistem em nos levar para brincar. Em Foto é o primeiro livro desse fotógrafo da favela da Maré (Rio de Janeiro), mas é também um convite a procurar beleza no nosso cotidiano: é um pedido para termos resistência, para celebrarmos tudo que faz de nós o que somos. Bom brincante, ele sabe que raiz é coisa muito séria e, com a leveza dos que vivem em busca de construir boas relações, ele faz da fotografia um caminho de autoconhecimento e aproximação com o outro.

 

(Foi a Paula Saccheta, documentarista da JoãoeMaria.doc, quem disse que deveríamos nos conhecer. Ratão estava com as provas gráficas de seu livro na mochila, eu queria saber mais sobre os registros fotográficos que ele faz em algumas festas brasileiras. Fomos almoçar e cada um de nós levou um outro amigo com a intuição de que nos sentiríamos todos à vontade. Falamos sobre mestres da cultura, sobre a escolha de um ponto de vista, sobre poesia regional, sobre viagens ao interior do Brasil. Algumas mensagens depois desse primeiro encontro e eu estava decidida: iria visitá-lo na Maré. E foi lá, observando seu afeto com os vizinhos e conhecendo um pouco mais da sua trajetória, que eu pensei: eu queria que mais pessoas estivessem nessa prosa comigo e Ratão!).

 

Brasis: Você nasceu e foi criado no Beco da Alegria e fez questão de mostrar esse lugar no teu livro. Como é o Beco da Alegria? Como esse lugar influenciou tua trajetória pessoal e profissional?

 

Ratão Diniz: Nasci no beco da Alegria que fica na favela Parque Maré. O beco da alegria é um espaço cheio de contrastes, conflitos, amizades… Ainda existe a relação da boa vizinhança, as pessoas cuidam umas das outras. No beco moram pessoas que vieram do interior do Brasil, daí essa relação de cuidado que ainda é mantida, já que trazem consigo seus costumes para os grandes centros urbanos, minha mãe foi uma dessas pessoas. A relação que minha mãe sempre teve com o outro reflete, sem dúvidas, no meu trabalho: o cuidar, o querer bem, o fazer.

 

Brasis: Qual foi o caminho de tua família pelo Brasil até vocês chegarem na Maré? O que você leva de cada um desses lugares?

 

Ratão Diniz: Minha mãe nasceu em Goianinha, no Rio Grande do Norte, e meu pai em Caiçara, na Paraíba. Eles se conheceram aqui na Maré e eu sou o mais novo desse casamento de quatro filhos. Estou numa etapa muito importante na minha caminhada porque tenho tentado fotografar mais o interior do Brasil, principalmente o Nordeste por conta dessa busca das minhas raízes, e tem sido muito intenso vivenciar tudo isso porque o que tenho tentado capturar são imagens das lembranças de histórias contadas por minha mãe, histórias que ela narrava quando íamos dormir. Sempre fui muito apegado a ela, e ouvi muitas historias da sua infância, da alimentação, das dificuldades financeiras da família, da cultura da região… O que tenho tentado fotografar são lembranças criadas no meu imaginário quando criança.

 

 

(Em Foto, primeiro livro do Ratão, com mais de 200 fotos feitas por ele nos últimos 10 anos.)

 

Brasis: No texto de abertura do EM FOTO, você menciona que é difícil captar a diversidade das coisas que são mais próximas. Por que isso é um desafio?

 

Ratão Diniz: Fotografar sua própria casa é um grande desafio porque é tudo muito comum. Durante as aulas com o João Roberto Ripper, que é minha grande referência na fotografia, aprendi que precisamos desconstruir esse olhar viciado e começar a perceber a sutileza da luz que passa pelas ruas, as histórias dos vizinhos, uma arquitetura, uma pintura genial… Tudo isso passa desapercebido pela própria rotina e que a fotografia nos permite começar a perceber essas imagens poéticas em nossos lugares de origem. Para o fotógrafo isso é importante, faz parte do processo de construção da sua identidade.

 

Brasis: Ficamos emocionados principalmente com tuas fotos das festas brasileiras e contigo aprendemos que vários brinquedos regionais existem também nas periferias e favelas das grandes cidades do Brasil: obrigado por dividir esse conhecimento. Quais são as festas que você mais gostou de fotografar nas favelas e no interior do país? E por quê?

 

Ratão Diniz: Cada festa tem sua particularidade mas, no momento, tenho fotografado muito aqui, na cidade do Rio de Janeiro, a Folia de Reis Penitentes do Santa Marta é um reencontro incrível com a minha infância. Quando criança, adorava ir atrás das folias aqui na Maré, infelizmente o mestre faleceu e ninguém levou adiante. Então, fotografar a folia do Santa Marta é parte deste reencontro com minhas lembranças.

 

Os bate-bolas também tem sido muito legal. É um carnaval do subúrbio carioca, que está fora da Sapucaí, ainda muito desconhecido pelo próprio carioca. Nos dois últimos anos, tenho acompanhado dois grandes mestres da fotografia capixaba, Rogério Medeiros e Apoena Medeiros, no norte do Espírito Santo para fotografar a festa do Ticumbi. É um encontro mágico de ancestralidade que só dá pra entender estando por lá e sentindo a energia.

 

O Bloco da Lama que acontece em Paraty também segue essa linha. Nessa documentação, tento fazer um recorte de algo mais tribal, uma relação do homem com a natureza numa espécie de ritual primitivo.

 

Brasis: No livro você divide uma descoberta: suas pesquisas fotográficas trazem a ideia de resistência. Por que será que você vê valor estético na resistência?

 

Ratão Diniz: A resistência é uma conexão total entre os temas que costumo fotografar e que estão no livro. A própria origem da palavra favela é um sinônimo de resistência: favela é uma planta que resiste ao frio, seca e calor do Sertão nordestino. O Grafite é uma linguagem utilizada por moradores dos espaços chamados populares para expressar e comunicar, não só nas favelas cariocas, mas em todo mundo. As festas também estão aí resistindo neste tempo tecnológico, e tenho visto resistir também a própria essência dessas festas: o brincar, estar com as pessoas, estar junto. E o último tema, interior, na essência da própria palavra já traz essa ideia daquilo que cada um mantém consigo: memórias, frustrações, emoções, alegrias.

 

Pitimbu/PB

(Foto por Aline Oliveira.)

 

Brasis: Enquanto caminhávamos pela Maré, você falou várias vezes sobre a necessidade de estabelecer um vínculo com o fotografado. Como isso acontece no teu trabalho e por que você considera que isso é tão importante?

 

Ratão Diniz: Uma fotografia se tornará interessante pelo contexto e pela experiência vivida naquela situação. Esse é o meu ponto de vista, é assim que acontece a minha busca fotográfica: a foto em si é consequência. Utilizo a fotografia como ferramenta para estar com as pessoas, para estreitar essas relações de aproximação que gosto tanto de falar. Só consigo fotografar após sentir que fui aceito, daí me sinto mais à vontade para fotografar. Não sou daquelas pessoas que gostam de roubar uma foto com o argumento de que, se pedir a autorização, a cena já não será mais a mesma. Longe de querer dizer o que é certo ou errado, mas eu sempre faço o seguinte questionamento: quem disse que você não pode capturar imagens interessantes na troca de experiências? Essa referência vem do grande mestre Ripper, é com ele que me inspiro para fotografar e criar o vínculo que vai além da fotografia em si. O que quero são amizades e elas se mantém através do respeito e do diálogo.

 

Brasis: Você comentou que a entrega da fotografia para o fotografado é, pra você, uma parte importante de um processo. Como você se sente quando entrega uma imagem captada por você para alguém que nela aparece?

 

Ratão Diniz: A entrega da fotografia aos fotografados é justamente para retribuir aquele momento mágico vivido. Fico muito feliz quando a pessoa, ao ver a fotografia, se reconhece na imagem. Se um curador ou um crítico de arte acha meu trabalho bom ou ruim, não dou tanta importância. Fotografo com outras pretensões e ouvir a opinião do fotografado é o grande barato. Se a pessoa que fotografei se vê e fica feliz com aquele resultado, penso que estou indo no caminho certo.

 

Brasis: Vários dos seus vizinhos da Maré elogiam e pedem um exemplar do livro. O que você sente quando as pessoas de tua comunidade têm essa reação ao teu trabalho?

 

Ratão Diniz: Esse foi o caminho que sempre desejei, fazer com que a favela se reconheça nessas produções e que esse trabalho possa retornar a ela. Esse é o maior reconhecimento do meu trabalho, ser reconhecido na Maré e em outros espaços que tenho fotografado. Acho importante que cada fotografado, e cada pessoa que abre seus espaços, receba o livro porque acredito que faz parte desse retorno que tanto falo. Ouvi de amigos que quando um de nós conquista algo, é uma conquista de todos. É uma vitória de toda a favela.

Por exemplo, visitando uma exposição aqui na Maré com duas amigas, encontrei o Luiz Felipe, um pequeno fotógrafo que participa da oficina Mão na Lata (com pinhole, uma técnica de fotografia artesanal). Daí, ele me perguntou onde poderia comprar o livro e eu comentei que já havia prometido dar um livro para a mãe dele. Ele me respondeu que gostaria de ter um livro no quarto dele porque é muito fã do meu trabalho. Bem, pensei: lógico, o livro tem que ser do Felipe e fiz questão de deixar um exemplar pra ele.

 

Brasis: É verdade que você prefere ter uma boa história a ter uma boa foto?

 

Ratão Diniz: Nunca me arrependi de ter perdido uma fotografia por estar focado no convívio, sei que muitas fotografias que faço são fruto dessa relação que tento estabelecer. Então penso da seguinte forma: se eu perdi o momento de fazer uma fotografia hoje, ganharei muito mais à frente, como amizade, experiências, histórias a serem contadas, e até mesmo outras imagens que vão surgir quando eu retornar.

 

Brasis: Qual é a foto do livro que você gostaria que as pessoas vissem no Brasis e por

quê? Conte a história dessa foto.

 

Ratão Diniz: Essa pergunta é difícil por demais! O livro é algo muito afetivo. Procurando essa imagem, eu escolhi duas páginas (136 e 137). Nelas estão três fotografias que fiz na cidade de Pitimbu, município onde Aline, minha companheira, nasceu. Essas fotografias representam uma infância que tive na Maré, são brincadeiras de escalar, pular, desbravar os espaços. Pude revisitar tudo isso através da fotografia acompanhando Junior, Formiga e Juca (que estão nas fotos), outras crianças e Aline. Essas fotografias foram feitas quando procurávamos rio para tomar banho, frutas para comer durante o percurso, aventuras pra dar bastante gargalhadas, desbravar a região.

 

Brasis: Quais são as principais dificuldades que você encontra no teu cotidiano e no teu trabalho? O que te motiva a resistir?

 

Ratão Diniz: A principal dificuldade é, sem dúvida, financeira. Como sustentar essas experiências por este mundão? Essa questão sempre me acompanhou e acredito que sempre irá me acompanhar, porque não pretendo viver de fotografia, mas sim para ela. As revistas, jornais e portais não estão interessados nos temas que fotografo porque para eles não são comerciais. O que me motiva é me lembrar que, há 10 anos, eu me interessei por fotografia para estar nos lugares e com pessoas, então entendo que isso é a essência da minha produção, o grande combustível que me faz estar em movimento e circular.

 

Brasis: O que você acha que nós, brasileiros, não sabemos e deveríamos saber sobre o Brasil?

 

Ratão Diniz: Puxa, muitas coisas. Precisamos viajar mais pelo país, precisamos estar com as pessoas, precisamos circular mais pela cidade e ver seus contrastes. Para, quem sabe, construirmos um ambiente melhor para se viver a partir das experiências trocadas.

 

(Fotos por Ratão Diniz e Aline Oliveira. Para utilizar as imagens, peça autorização.)

 

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