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Pelas mãos de Alagoas 01: Dona Irinéia e o barro do Muquém

 

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Pelas mãos de Alagoas: um inventário de lugares, ofícios e pessoas

 

(Foram intensos sete dias de viagens pelo território de Alagoas acompanhando o registro do seu artesanato através da fotografia. Partindo todos os dias da capital, Maceió (deixando para traz uma cidade bastante líquida, onde o mar percorre toda sua costa leste e a Lagoa Mundaú, toda sua porção oeste), rumo aos interiores e suas mais diversas paisagens: Sertão, Agreste, Zona da Mata, litorais sul e norte.  Nesses movimentos de ir e vir, de conhecer e reconhecer, de ver e rever, de construir novas memórias e recordar antigas experiências vividas, me aproximei verdadeiramente do estado onde nasci. Passei a me sentir como parte da paisagem: na medida em que elas passaram a me habitar, também me senti habitando-as.)

 

Se estamos falando sobre Alagoas é interessante dar uma olhada rápida no mapa do Brasil e reparar que o desenho de seu território pode ser lido como uma letra V bem aberta, cuja ponta da esquerda aponta para Pernambuco, que por sua vez aponta para o Piauí, que aponta para o Maranhão, que aponta para o Pará e que por fim aponta para Roraima; e onde a ponta direita desse mesmo V apenas aponta para Pernambuco, pois logo depois cai no mar do Atlântico. Iniciarei as narrativas sobre essas viagens de descoberta por um simbólico povoado localizado num ponto dessa linha imaginária que de Alagoas vislumbra o Atlântico. Foi numa sexta-feira que pisei pela primeira vez no chão do Muquém e onde conheci Dona Irinéia Rosa Nunes da Silva, uma artesã do barro (e de mão cheia).

 

O povoado do Muquém, uma comunidade de descendentes quilombolas em União dos Palmares, município da Zona da Mata alagoana, ao norte do Estado e cerca de 70 Km distante de Maceió. Um lugar bastante simbólico, pois se localiza próximo à Serra da Barriga, chão do Quilombo dos Palmares, de Zumbi: os habitantes de Muquém são os filhos dessa resistência negra. O povoado, nas proximidades do rio Mundaú, ocupa uma área de aproximadamente 20 hectares (0,2 km²) onde cerca de 120 famílias dão vida ao lugar, pessoas que vivem da fabricação de artefatos de cerâmica, de pequenas lavouras, da fabricação de farinha de mandioca e do trabalho nos canaviais de cana-de-açúcar – cultivo que consumiu (e continua a consumir) a Mata Atlântica nativa e delineou imensos vazios verdes que preenchem boa parte do território de Alagoas.

 

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O trabalho com barro e a produção de farinha são costumes que resistem e que remetem ao cotidiano dos quilombos; a fabricação de artefatos de cerâmica reflete um modo de fazer tradicional da comunidade que produz e vende essas louças utilitárias há gerações; o trato com a macaxeira, por sua vez, fala sobre a incorporação da cultura alimentar indígena pelos povos africanos, sobre o encontro entre índios e negros no Brasil.

 

O barro do Muquém, de coloração avermelhada, vira panela, vaso, potes, cabeças, mãos e histórias. A partir de um processo de criação bastante artesanal, sem a ajuda de equipamentos sofisticados, em que a maioria dos detalhes são esculpidos usando a mão e a habilidade dos diferentes dedos.  E, ao que tudo indica, na comunidade o trato com a matéria-prima não se alterou com o passar do tempo e das gerações: retiram o barro dos barreiros, pisoteiam, amassam, moldam e queimam as peças em fornos que são construções rudimentares, também feitas de barro, arredondadas, de grande dimensão e ao ar livre. Após a queima, as peças não recebem nenhum tipo de pintura e permanecem com a cor natural, crua. Uma cor viva, aquecida pelo fogo.

 

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Diante dessa cultura do barro, os objetos que Dona Irinéia esculpe são bastante peculiares, pois vão além da produção tradicional. Dentre as cerâmicas que produz destacam-se, sobretudo, as cabeças negras que trazem lábios, nariz, olhos, orelhas e cabelos rudimentarmente delineados, mas sensivelmente expressivos. Nessas cabeças, de variados tamanhos, ornamentações e penteados, o barro é uma espécie de espelho que não reflete o todo, mas os pequenos detalhes de suas próprias feições, das feições do rosto de um povo de cor negra. Através do barro e a partir de um saber popular, rústico, vernacular, livre e ao mesmo tempo impregnado de símbolos da cultura de massa (a exemplo do penteado que divide os cabelos ao meio e amarra-os em dois volumes no alto da cabeça de inspiração numa personagem de novela), a artesã modela sua própria identidade e ao fazer isso projeta a imagem de seu povo quilombola no mundo, um processo que pode ser lido como gesto de afirmação da cultura afro-brasileira.

 

Outra utilidade que Dona Irinéia sabiamente faz do barro é modelar narrativas sobre episódios locais, experiência vividas pela comunidade, a exemplo das cheias do rio Mundaú, que castigaram a comunidade no ano de 2010. Para sobreviver, algumas pessoas passaram a noite trepadas numa jaqueira esperando o nível da água descer e tudo isso foi transformado em peças de cerâmica. A artesã utiliza o saber adquirido com seus ancestrais para criar representações de si mesmo e de seu cotidiano. Em suas mãos, o barro avermelhado transforma-se numa narrativa do cotidiano, num registro da memória da paisagem do Muquém.

 

Reconhecida como Patrimônio Vivo do Estado de Alagoas desde 2005, Mestra Irinéia  é a principal artesã do povoado, mas algumas poucas pessoas também resistem e mantêm a tradição do trato com o barro, a exemplo de seu marido, Seu Antônio, com quem trabalha em parceria, e de Aparecida, Marinalva e Seu Laelson, personagens dessa história sobre o artesanato feito em Alagoas, detentores de um saber que se aprende quando criança num lugar extremamente simbólico onde o barro, mãos e cabeças falam sobre tradição, criatividade e resistência.

 

(Fotos por Michel Rios, junho de 2013.)

 

Comentários

  1. Nádima Carvalho disse:

    Gostei muito do texto e fotografias
    Revivi o momento que conheci o Quilombo e todo esse espaço que nos lembra nossa história e tive oportunidade de visitar e aproveitar muito
    Tenho alguns álbuns de fotos e história do folclore e artesanato de Alagoas
    Mandarei um p vcs
    Muitos beijos
    Nádima

    1. Oi Nádima,
      Fico feliz em você ter gostado do texto e obrigada por nos dar um retorno, isso é sempre enriquecedor para o trabalho feito pelo Brasis. Quero ver esse material que você tem, pode separar que assim que der eu pego e trago para nossa biblioteca!
      Beijos

  2. Stella Maris Souza da Mota disse:

    Excelente trabalho, o qual nos traz a consciência dos valores da nossa terra e
    revela um jeito autêntico de viver e se fazer singular. Parabéns pelo esmerado trabalho.
    Abraço
    Stella Maris

    1. Obrigada, Stella.
      Há ainda muita coisa boa para falar sobre Alagoas, vamos adiante!
      Abraços

  3. Maíra disse:

    Parabéns pelo trabalho!
    Realmente uma valorização do artesanato e da cultura de Alagoas que são tão bonitos!
    Precisamos disso!
    Beijos

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