Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Pelas mãos de Alagoas 06: Ilha do Ferro 2

 

DedodeProsa_PMA06_01

 

Pelas mãos de Alagoas: um inventário de lugares, ofícios e pessoas

 

(Chegamos à última narrativa sobre a série de viagens pelo território de Alagoas em busca de alguns protagonistas do artesanato feito no estado. Há ainda muita prosa a ser levantada, novos encontros e outras descobertas sobre os saberes e os ofícios tradicionais de homens e mulheres que com suas mãos modelam sob diferentes suportes e materiais a identidade de um povo brasileiro e nordestino. Adianto que essa série demarca uma primeira imersão e que há o desejo de dar continuidade a essa cartografia da arte cotidiana de Alagoas. Uma cartografia que é sobretudo afetiva pois se faz a partir de encontros e de trocas entre diferentes pessoas e suas paisagens particulares, onde mapas são desenhados por várias mãos. Para cartografar é preciso sair em busca, se aventurar, pausar para conversar, para prosear, adentrar e atravessar não apenas territórios, mas paisagens interiores. A partir de um contínuo exercício de levantar e aprofundar histórias e o olhar sobre o outro, novas linhas ainda serão traçadas e atravessadas. Assim, esse primeiro conjunto de narrativas pode ser lido como um mapa preliminar. Através do encontro com artesãos e com aquilo que eles produzem com suas mãos eu construo minha identidade, ao compartilhar essa construção através de narrativas colaboro para que outras pessoas adentrem ao território de Alagoas, assim o estado se expande e o Brasil ganha profundidade, as divisas entre os seus estados tornam-se apenas passagens e assim tecemos uma grande rede. Nesse mapa, o artesanato é um canal por onde escoa a identidade de um povo, que por sua vez é um reflexo do seu lugar de origem. Através de saberes populares, genuínos e de ofícios tradicionais enraízo minha identidade no mundo e aprendo continuamente sobre liberdade e criatividade. Pelas Mãos de Alagoas é canteiro aberto).

 

A narrativa sobre a Ilha do Ferro continua e agora se volta às artesãs ribeirinhas e sertanejas, mulheres especialistas num bordado que tem nome de flor: o Boa-Noite. Ao adentrar ao lugarejo, sob a sombra das árvores ou nas portas das casas, é fácil encontrar uma mulher com o tecido esticado no bastidor e com a agulha na mão fazendo coreografias com os braços. Num contínuo atravessar o tecido, puxando e repuxando as linhas, guarnecendo com flores pedaços crus de algodão. O Boa-Noite é a tradução feminina da poética Ilha do Ferro e um saber tradicional incorporado aos fazeres cotidianos dessas mulheres ribeirinhas.

 

Dizem os moradores que a sua inventora foi uma agricultora chamada Dona Ernestina, que viu numa singela flor bastante comum no povoado, a Boa-Noite, a inspiração para criar um ponto de bordado. A recorrência desse ponto ao ornar um mesmo pano fez dele no nome do próprio bordado. A delicada Boa-Noite é uma planta rústica de fácil propagação e que exige poucos cuidados e, apesar de ser bastante comum no Nordeste, se adapta bem por todo o Brasil onde é conhecida também como Maria-Sem-Vergonha. Contudo, foi na Ilha do Ferro que o desenho da sua flor se transformou em um bordado. Chão tradicional, é apenas nesse pequeno povoado do Sertão alagoano que tradicionalmente se faz esse tipo de bordado.

 

DedodeProsa_PMA06_02

 

Delicado, singelo e geométrico, assim pode ser definido o Boa-Noite. A delicadeza do bordado reflete a delicadeza da flor que possui cinco pétalas e um pequeno miolo e que geralmente é encontrada tanto na cor rosa quanto na cor branca, fora do povoado também possui variações nas cores vermelho e roxo.  Feito na ilha há mais de um século, segue o mesmo princípio técnico do labirinto e é bastante semelhante ao redendê, contudo possui um repertório próprio formado por quatro pontos, dois mais simples e dois mais complexos: o Boa-Noite Simples (o principal), o Boa-Noite Flor, o Boa-Noite Cheio e o Boa-Noite Variado.

 

Assim como no redendê e no labirinto, no Boa-Noite é utilizado um tecido desfiado, de maneira que a primeira etapa consiste em desconstruir a trama, abrir caminhos para o tecido receber os pontos do bordado. O segredo para essa tarefa está no olhar atento à contagem dos fios a serem removidos, um trabalho que exige concentração e uma vista boa. Contudo, diferente dos outros dois bordados citados, não é preciso riscar o tecido e transferir o desenho através de molde de papel, não há necessidade disso uma vez que o Boa-Noite segue um padrão geométrico, pois a desfiadura segue a trama do tecido. Com o auxílio de uma agulha ou de um descosturador, as bordadeiras puxam e cortam alguns fios do tecido, formando quadrados alternados de espaços abertos. Esses espaços abertos são chamados de casas, pequenos furos que aludem ao miolo da flor Boa-Noite e os espaços fechados quadrados são, por sua vez, os pauzinhos. Esses quadrados são recompostos através de pontos do bordado, cada ponto representa uma pétala.  No encontro de quatro quadrados nasce, portanto, uma flor. Inspiração e não espelho da natureza, a flor do bordado possui apenas 4 pétalas. Assim como as esculturas de madeira da Ilha do Ferro é preciso exercitar a imaginação pois o significado está além. Composição poética, para ler o bordado Boa-Noite é preciso abstrair a forma para decifrá-la. Desbravar a ilha é semelhante à leitura de poesias.

 

DedodeProsa_PMA06_03

 

A vida das mulheres da ilha segue em um contínuo ritual. Pela manhã se dedicam as atividades doméstica. Logo cedo vão lavar roupa no rio, depois preparam o café da manhã, cuidam dos filhos, das plantas, dos bichos, das roupas, limpam e arrumam a casa, cozinham o almoço e outras tantas atividades ininterruptas que uma casa demanda da sua dona. Geralmente é pela tarde que as artesãs se põem a bordar e um novo ciclo tem início. O ritual do Boa-Noite reside em contar, puxar, cortar os fios, bordar, transferir o pano para um tear, lavá-lo e engomá-lo no rio, secá-lo ao sol e finalizar com os acabamentos nas bordas do tecido.

 

Pano bom para bordar é feito de puro algodão. Linho, percal, cambraia de linho são os mais utilizados pelas bordadeiras do povoado. Já as linhas são finas e também de algodão, tanto coloridas como na cor do próprio tecido. Os materiais de qualidade garantem a durabilidade do bordado e refletem o esmero com o qual as mulheres desenvolvem o seu ofício, garantindo ainda valorização e maior reconhecimento do produto. E com esse primor elas fazem uma infinidade de produtos, toalhas de jantar, caminhos de mesa, paninhos de bandeja e de pãozeira, guardanapos, panos de prato, jogos americanos, cortinas, capas de almofada, jogos de cama, marcadores de livro e outros paninhos. As artesãs também bordam tecido que são entregues para tornarem-se o que se desejar, de peças de vestuário a peças de vestir casas.

 

Muitas mulheres trabalham nas suas próprias casas, contudo o maior reduto de artesãs se dá às margens do São Francisco, na casa-alpendre que é a sede da Cooperativa Art-Ilha que há quase vinte anos reúne uma parte das artesãs do povoado. Atualmente, por volta de vinte mulheres se reúnem diariamente à beira do rio para bordar. Estar junto é uma forma de convívio e incentivo, é demarcar o lugar das mulheres fora de casa, é criar um espaço de trabalho. É ser valorizada e reconhecida. Unidas, ao compartilharem o espaço e as encomendas, constroem uma teia sólida, participam no orçamento familiar e tem sua autonomia e independência firmadas. Não faltam encomendas para as bordadeiras da Art-Ilha e geralmente as entregas seguem pelos correios até os distintos endereços Brasil adentro e a fora. Em algumas situações precisam fazer um mutirão para dar conta da demanda e isso só é possível diante de um espírito colaborativo. O bordado, na Ilha Ferro, é uma ferramenta que dá emponderamento às mulheres ribeirinhas e sertanejas.

 

O Boa-Noite, antes de ser uma das principais atividades econômicas na Ilha do Ferro, juntamente com o artesanato em madeira e a pesca, é um fazer que estabelece laços afetivos entre mulheres do povoado. As meninas crescem vendo suas mães, tias, primas e avós bordando e só no observar incorporam essa cultura do bordado. As primeiras aventuras com linhas, agulhas e tecidos acontecem por volta dos 8 anos, onde as meninas geralmente começam ajudando nas etapas mais fáceis. Ao que parece, a continuidade dessa tradição é estabelecida no próprio vínculo que as meninas geralmente têm com as mulheres da família, a própria companhia que fazem umas às outras propicia a transmissão do saber entre gerações e assim o Boa-Noite segue se espalhando pela ilha. Contudo, esse é um saber tradicional que aponta para mais longe, o Boa-Noite representa um elo com as mulheres portuguesas. Uma herança trazida de além-mar e reconfigurada em terras brasileiras através das mãos de mulheres criativas que à beira do Rio São Francisco reinventaram bordados tradicionais, desenvolveram novas variações sobre uma mesma técnica de desfiar e recompor o tecido através de motivos de inspiração floral. O resultado impressiona por tamanha beleza e delicadeza e projeta o feminino para fora desse universo ribeirinho do sertão de Alagoas que é a Ilha do Ferro.

 

(Fotos por Michel Rios.)

 

A editoria Dedo de Prosa traz histórias brasileiras inspiradoras, destacando as pessoas e seus ofícios. A seção Pelas Mãos de Alagoas, uma cartografia da arte cotidiana do estado, é feita por Luísa Estanislau.

 

Comentários

  1. Fernando Barbosa disse:

    Beleza de texto que nos remete para além dele. Parabéns, Luh.

Deixe uma resposta para Fernando Barbosa Cancelar resposta

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

Você pode usar estas tags e atributos de HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>