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Pelas mãos de Alagoas 04: Antônio de Dedé e do Agreste

 

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Pelas mãos de Alagoas: um inventário de lugares, ofícios e pessoas

 

(A nova viagem pelo artesanato feito em Alagoas atravessa o estado até o seu centro. Ao traçar no mapa, de modo livre, uma linha vertical e outra horizontal, a cidade de Lagoa da Canoa está situada logo abaixo de Arapiraca, o ponto em que nos meus rabiscos de cartógrafa brincante essas duas guias se encontram. E alcançar o centro significa adentrar à aridez do Agreste. No entanto, é curioso que mais do que as transformações da paisagem o que me chama a atenção é aquilo que vai se modificando dentro de mim todas as vezes em que me distancio do litoral, da paisagem líquida e úmida em que fui criada).

 

Ao longo dos caminhos que cortam o Agreste, agrupamentos de palmas, com seus ramos ovalados, achatados e carnudos pontuam as margens das estradas, assim como em todos os perímetros urbanos barracas vão surgindo onde abóboras, milhos assados, macaxeiras, inhames, batatas doces, pencas de banana, ovos caipira e orquídeas exóticas e outras plantas ornamentais são alguns dos itens comercializados.

 

Aquilo que a terra dá e a vida de Seu Antônio de Dedé estão relacionadas intimamente. Seu Antônio é um homem rural que trabalhou quase toda a sua vida na roça, foi aos 8 anos de idade que pegou pela primeira vez numa enxada para ajudar o pai na subsistência da família. Faz apenas um punhado de anos, não mais do que uma década, que ser artesão tornou-se sua profissão e seu meio de sobrevivência, mas o interesse pela madeira vem desde de menino. Em sua infância gostava de brincar com pedaços de madeira, de onde extraía de um tudo: pinhões, carrinhos, carrocinhas, casinhas de bonecas, passarinhos e outros bichos. Foi observando o pai, além da lida na lavoura trabalhava como pedreiro, que aprendeu a transformar materiais, a construir coisas. Aliás, também foi do pai que herdou o Dedé que traz junto ao seu nome. Hoje pai de nove filhos, o que o mestre artesão transmite para eles é o seu saber artístico.

 

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Seu Antônio é um contemplador da natureza. Observar o jeito que pessoas e animais se movimentam é a sua principal ferramenta criativa e a sua fonte de inspiração. Seu trabalho caracteriza-se por uma extrema originalidade em traduzir a anatomia dos gestos dos seres em seus mínimos detalhes. Aliada a essa inventividade, suas peças explodem em cores e, geralmente, são pintadas com tinta acrílica, que atribui brilho à cor. Reflexo de um povo de raízes rurais, a temática religiosa é a mais recorrente. São Sebastião e sua chagas, São Jorge e seu cavalo e o dragão, São Francisco acompanhando por pássaros, Cosme e Damião, São João, São José, a Virgem Maria, Jesus, mas também seres comuns, habitantes do plano terreno: a médica, a noiva, pássaros, tartarugas, pavões, cavalos, onças, leões ou qualquer outro ser que vier à tona em sua fértil imaginação. Há também heróis e personagens encantados, a exemplo da sereia e de Zumbi dos Palmares. Na verdade, utilizando pedaços de madeira e tintas, tudo pode ser criado em suas mãos de escultor. Dom é a palavra que o próprio artesão utiliza para explicar o seu saber artístico.

 

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A verticalidade de suas esculturas é a grande marca impressa pelo artista. Seus personagens possuem corpos alongados, onde mãos e pernas são dispostas rente ao corpo compondo um único volume. O mestre também esculpe, mas em menor recorrência, peças horizontais e costuma criar peças conjugadas em que cruza o vertical com o horizontal, geralmente homens montados em cavalos, pavões ou outros animais.  As peças possuem distintos tamanhos que variam entre 50 centímetros e 2,5 metros e em todas elas tudo é minuciosamente esculpido e colorido. Segundo o próprio artesão, suas peças possuem estilos variados e ele não tem o costume de repeti-las, pois cada momento de criação é uma revelação, um diálogo único entre sua imaginação e suas mãos.

 

O mestre ganhou notoriedade nos quatro cantos do Brasil e além-mar a partir do encontro com a artista plástica e galerista alagoana Maria Amélia Vieira, grande admiradora e incentivadora de sua arte. No princípio, ainda quando trabalhava na roça, o artista fazia apenas peças de pequena dimensão, sobretudo pássaros, mas a partir de encomendas feitas pela galerista foi estimulado a expandir sua inventividade criadora. A partir desse momento, suas peças ganharam novas escalas, enormes esculturas verticais tornaram-se a sua principal marca, novas encomendas foram surgindo e o nome de Antônio de Dedé saiu do Agreste para o mundo.

 

São figuras que provocam um sentimento de arrebatamento e isso me faz enxergá-las como totens, objetos-talismãs. Apesar de possuir apenas uma vaga ideia sobre essa prática escultórica, me sinto à vontade para definir um totem como uma escultura vertical de madeira de elevada altura e detalhadamente talhada que representa um vínculo com o sagrado. Longo talismã de madeira que pode ou não ter características antropomórficas. Protetor e guardião, a partir da terra se comunica com os deuses, daí sua elevada estatura. Um totem é, portanto, um objeto que emana respeito, venerado como um símbolo sagrado, pois representa o desconhecido. Precisamos olhar em direção ao céu para poder ver melhor esses objetos.

 

E as enormes esculturas do mestre Antônio de Dedé são capazes de me transpor para outros lugares, objetos que causam admiração, encantamento e certo estranhamento. As cores vibrantes, a elevada estatura, os traços e expressões faciais rudimentares, a vitalidade impressa em todos os mínimos detalhes transformam esses personagens esculpidos em troncos de jaqueira em seres fantásticos, surreais, personagens exóticos, extravagantes e originais que nos emudecem diante da sua presença.

 

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Talvez todo o arrebatamento que senti diante dessas peças seja uma consequência de ter atravessado as fronteiras do Agreste e de simbolicamente estar no meio de Alagoas. De maneira que, defini-las como totem pode ser que não faça muito sentido, mas acredito que compartilhar esse sentimento faz. Contudo, ao conversar com o artesão descobri que atualmente, em decorrência de problemas na coluna e no joelho, esculpir peças maiores, mais pesadas, lhe causa dor. Em razão disso, Seu Antônio tem diminuído o ritmo de trabalho, mas conta com os filhos para a árdua tarefa de continuar a colorir pedaços de madeira.

 

Dos seus nove filhos, 8 são artesãos, apenas sua filha mais nova (ainda) não se enveredou por esse caminho. Além do seu saber artístico, Seu Antônio transmitiu para os filhos o encantamento diante de uma peça acabada. Ao conversar com as suas duas filhas artesãs, percebo que assim como o pai, essas duas mulheres sentem-se orgulhosas diante do trabalho que fazem, sentem prazer ao admirar as peças que esculpem. Esse é o sentimento transmitido por uma família de artistas, a família de Antônio de Dedé, sentimento que atravessa aqueles que se aproximam de suas peças. Na produção artística dessas mulheres é bonito ver o destaque que elas dão às figuras femininas. Em relação ao trabalho do pai, suas peças são menores e esculpidas de modo mais simples. Apesar não receber muitos entalhes, são personagens ricas de detalhes impressos em tecidos estampados e nos chapéus e outros tipos de adornos, que remetem aos turbantes, que trazem nos topos de suas cabeças.

 

É algo bastante curioso e extremamente significativo que, ao adentrar ao interior de Alagoas, as cores comecem a explodir nas peças de artesanato, em contraste com a paisagem preenchida por tons arenosos e terrosos. No meio da aridez de uma cidade do Agreste, a cor surge como um elemento contrastante na paisagem de Lagoa da Canoa através da arte da família de Antônio de Dedé. As palmas ao longo do caminho anunciam através de suas flores avermelhadas o que encontraremos mais à frente. Assim como de uma planta espinhosa, brotam flores formosas e avermelhadas, em Lagoa da Canoa, um lugar isolado, que vive na sombra de um passado mais próspero e de uma terra que garantia a subsistência através de uma agricultura mais inclusiva e familiar, arte e cultura brotam na casa de Antônio de Dedé. Uma casa simples preenchida por cores vibrantes, um relicário de seres fantásticos esculpidos na madeira.

 

(Fotos por Michel Rios.)

 

Comentários

  1. Maíra Almeida disse:

    Mais uma vez fantástica a reportagem! Parabéns!!! Viajei para as obras de Antônio Dedé.

  2. Fernando Barbosa disse:

    Quando se lê, parece que já estivemos lá!

  3. Vera ferreira disse:

    Sou admiradora da arte em geral.e seu texto me fez ficar fascinada por esta família e sua arte.
    Parabéns…

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