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Pelas mãos de Alagoas 03: Mestre André da Marinheira

 

Pelas mãos de Alagoas: um inventário de lugares, ofícios e pessoas

 

(Os movimentos de travessia pelos caminhos do artesanato feito em Alagoas me levaram ao terceiro e último destino endereçado na Zona da Mata. Quando ouço essa expressão, uma definição de uma faixa de terra verde e úmida da região Nordeste, percebo que ela está ligada a um passado onde essa mesma terra era coberta por uma densa Mata Atlântica e que hoje a palavra zona apenas define o lugar pela marcação virtual do que restou dessa exuberância verde. Ou seja, representa simbolicamente, ou por linhas imaginárias dentro de um mapa temático específico, o passado. Mesmo que desse verde denso saibamos que pouco permanece, ao chegarmos em Boca da Mata a memória dessa exuberância (leia-se aqui a memória como o que permanece do passado nessa mesma paisagem) nos impacta. Sentimento que se potencializa ao ver toda uma fauna de madeira esculpida há gerações pela família da Marinheira).

 

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André é um dos vinte filhos do Mestre Manuel da Marinheira, o artesão que iniciou a arte de fazer bichos de madeira (e, em menor escala, outros personagens) em Boca da Mata. Além dele, outros quatros filhos seguem o ofício do pai. Antônio, Severino, Maria Cícera e Manuel Filho, mas, segundo André, cada um foi tomando seus caminhos e trabalham de forma independente.

 

A história dos Marinheira aponta para além-mar. Segundo os relatos contados e repassados pelos familiares mais velhos, o avô de André, o pai do Seu Manuel era um alemão que para fugir da guerra cruzou a vastidão de água e de terra que separam a América da Europa e se abrigou na Boca da Mata de Alagoas. Seu Liberalino era nome desse homem que nas horas vagas esculpia na madeira ex-votos, imagens sacras, balaios e outros objetos apenas para decorar a casa ou presentear amigos e foi observando-o que Manuel, por volta de seus 12 anos, esculpiu escondido a sua primeira peça: um coelho. E ao contrário do que imaginava o filho, o pai, ao descobrir as suas estripulias, não o repreendeu e sim estimulou o menino Manuel a brincar de esculpir madeira.

 

Segundo André, Seu Liberalino era um marinheiro e sua esposa, Dona Maria Justina, era conhecida como Marinheira, a mulher do marinheiro, e o filho, por sua vez, era o Manuel (filho) da Marinheira. Já Maria Justina era uma alagoana nascida em Fernão Velho, bairro operário de Maceió com cara de cidade, beirado pela lagoa Mundaú e pelos trilhos do trem. E foi a partir desse encontro entre Liberalino e Maria Justina que está a origem do nome dessa família de escultores de Boca da Mata.

 

Estabelecido em Boca da Mata, Manuel trabalhava na roça e esculpia paralelamente a sua labuta. Foi apenas em meados da década de 1970, após receber a visita do fotógrafo Celso Brandão (figura muito importante na cena cultural alagoana, pois através de suas fotografias e de seus filmes etnográficos foi e continua sendo um dos principais personagens responsáveis pela difusão das manifestações da cultura e dos saberes populares de Alagoas) que Manuel começou a dedicar-se apenas à madeira, à escultura, à arte. Foi através de Fernando Lopes, que frequentemente ia à Boca da Mata atrás de quadros do pintor Aloísio Coimbra (cuja temática predominante é o folclore de Alagoas) que o fotógrafo ficou sabendo do trabalho de Marinheira e movido pela curiosidade que lhe é característica foi conferir de perto o trabalho do escultor. A partir desse encontro, fotografias foram feitas e transformaram-se num veículo de circulação da fauna de Marinheira. Através dessas fotografias assim como pela fama impressa pelo boca-a boca, turistas, colecionadores, galeristas e demais pessoas interessadas por artesanato começaram a procurar os bichos da Marinheira. As encomendas cresceram a ponto de Manuel precisar ensinar a seus filhos o seu saber para que eles o auxiliassem.

 

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Sobre o trabalho de Seu Manuel, André conta que eram na sua maioria felinos de formas simples e traços rústicos e muito disso se deve às ferramentas disponíveis na época. Os gatos esculpidos verticalmente, espécies de totens felinos que lembram também a representação desses animais no mundo egípcio, são as peças mais famosas associadas ao Mestre escultor, falecido em 2012. Esses gatos verticais continuam sendo esculpidos por André e são as peças que ainda têm uma maior procura, pois além de uma beleza fascinante, quase míticas, o seu formato alongado faz com que não ocupe muito espaço tanto para seu transporte quanto na maioria das casas, que geralmente são apartamentos pouco amplos. Mas André faz todo tipo de bicho e se inspira em animais de qualquer lugar. O universo de inspiração da família da Marinheira partiu dos animais que povoam Boca da Mata, mas se espraiou em todas as direções possíveis, o artesão conta que já fez até um dinossauro. Em seu trabalho, André foi aprimorando os ensinamentos do pai e imprimindo um estilo mais pessoal, sobretudo ao desenhar com fogo as pintas e as listras nos corpos de suas onças e de seus tigres e ao aprimorar o entalhe de detalhes anatômicos.

 

 

A principal matéria-prima para as esculturas são troncos de jaqueira, árvore nativa do lugar. Quando cheguei para visitar o ateliê de André, um pequeno galpão ao lado de uma garagem e de frente para casa onde mora, caía uma chuvinha rala, o mato ao redor estava verdinho e molhado, as galinhas, também molhadas, cacarejavam por todo o terreno, o artesão extraía de dentro de um tronco robusto de jaqueira, de corte fresco e bem amarelo, um enorme gorila, uma fêmea que iria se juntar a um macho já existente. Mas André faz questão de enfatizar que apenas utiliza as árvores quando elas deixam de ser férteis, quando não mais dão frutos. A consciência e o respeito para com a natureza e o seu ciclo de vida e morte está muito presente na vida desse homem, uma sensibilidade que também deve ter herdado do pai. Percebo, através da sua fala, que André é um grande observador da natureza pois é nesse exercício diário, de observar o meio, que o artesão vai descobrindo os animais contidos nos troncos das árvores.

 

Há ainda uma boa história de pescador contada por André. Muitas das peças de Manuel estão espalhadas por aí, em acervos de galerias ou de colecionadores e na família poucas peças ficaram para recordação. Certo dia ao sair para pescar (nas horas vagas André gosta de ser pescador), começou a cair uma chuva e ao desejar acender um cigarro percebeu que o fósforo que carregava no bolso havia molhado, foi quando André avistou uma casinha de taipa no meio do mato e decidiu bater lá para arranjar fogo. Ao chegar, uma velha senhora o recebeu e enquanto esperava o fósforo André percebeu num canto da sala, meio abandonado, sujo, coberto por pucumã um pequeno tatu que logo reconheceu ser uma peça de autoria de seu pai. Ao puxar conversa com a senhora a fim de descobrir como aquela peça havia chegado naquele lugar, queixosa, a velha reclamou que a peça era muito feia pois não havia produto que desse jeito naquele pedaço de madeira e que fora Manuel, um rapaz que de vez em quando limpava seu terreno e os matos dos arredores, que havia feito aquele tatu e a presenteado. André falou que era filho desse homem e que não tinha nenhuma peça dele foi aí que a velha senhora decidiu presenteá-lo com o tatu. Assim, graças a uma coincidência de caminhos cruzados, numa manhã chuvosa, André guarda consigo uma das primeiras peças feitas por Manuel.

 

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Uma legião de animais e outras peças, como os santos e representações religiosas feitas por Maria Cícera, a única Marinheira artesã, estão reunidas no Museu Manuel da Marinheira, localizado na fazenda Moreira, no balneário Águas de São Bento, em Boca da Mata. Trata-se de uma coleção privada aberta ao público que reúne para mais de 1500 peças da família Marinheira e também de seus discípulos. Todas pertencentes ao colecionador Jorge Tenório, um incentivador (ou mecenas) dos artesãos desde meados dos anos de 1960. Mas nesse acervo, segundo André, apenas umas peças 20 devem ser de autoria do Mestre Manuel.

 

É importante e bonito saber que uma nova geração da Marinheira mantém o contato com a escultura em madeira: André Vitor, 8 anos e filho de André, recentemente começou a brincar de esculpir. André é reconhecido Mestre da Arte da Escultura de Madeira pelo Sebrae e já recebeu vários prémios estaduais e nacionais relacionados à cultura popular e ao artesanato e, assim como o pai, suas peças povoam os mais distintos lugares do Brasil e do mundo.

 

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Nessa jornada pelo artesanato, Boca da Mata é uma espécie de entre-lugar, colado ao mar e ajuntado a paisagens mais áridas e secas, mas não menos fascinantes que nos deparamos ao adentrar mais ao território de Alagoas.  A partir desse encontro com a família da Marinheira mergulhos para longe do mar foram dados, mergulhos menos molhados, mas não menos macios. Zona da Mata, Boca da Mata e o primeiro ciclo dessa travessia Pelas Mãos de Alagoas parece se completar.

 

(Fotos por Michel Rios.)

 

Comentários

  1. Maíra Almeida disse:

    Parabéns pela matéria Rica a arte da família Marinheira! Encantadora!
    Assim como as anteriores, me faz entrar na cultura alagoana, mesmo à distância!

    1. Oi Má, fico feliz por você ter gostado do trabalho da Marinheira e mais ainda por estar sempre acompanhando essa editoria.
      Beijos

  2. Fernando Barbosa disse:

    Belo texto e sigo conhecendo mais sobre os nossos artistas. Bj

    1. E ainda temos tantos artistas para conhecer juntos!

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