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Pelas mãos de Alagoas 02: João em Capela

 

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Pelas mãos de Alagoas: um inventário de lugares, ofícios e pessoas

 

João das Alagoas faz escola em Capela, município da Zona da Mata Alagoana. Trata-se de uma escola de escultores do barro e ter o barro como matéria-prima tradicional para uma produção artística indica que um rio está presente para amolecer o solo do lugar. Em Alagoas, os principais locais produtores de objetos de cerâmica se concentram nas beiras dos rios, essa característica geográfica e climática costura uma tradição que liga simbolicamente Mestra Irinéia e Mestre João e, respectivamente, os rios Mundaú e Paraíba (do Meio), aquele que percorre os estados de Pernambuco e Alagoas e deságua na Lagoa Manguaba no município de Pilar, AL.

 

A segunda narrativa sobre as viagem por Alagoas e as descobertas sobre o seu artesanato fala sobre uma tradição de escultores de cerâmica figurativa inaugurada há quase três décadas na cidade de Capela e João das Alagoas é o protagonista dessa narrativa. Autodidata e detentor de um primor técnico admirável, de encher os olhos, não apenas descobriu a sua própria vocação artística como foi capaz, generosamente, de despertar a vocação de outras pessoas do lugar. Tudo isso pelo desejo de compartilhar o seu saber com os mais jovens e de transformar o lugar onde nasceu.

 

João descobriu o gosto pelo barro quando menino, por volta dos sete anos e sozinho começou a modelar objetos de brincar e a partir dai foi experimentando e, no acúmulo de acertos e erros, foi aperfeiçoando a sua técnica e a sua arte. Na lembrança de João, em Capela e na região, a relação das pessoas com a modelagem do barro era restrita à feitura de objetos utilitários. Foi inclusive com uma senhora que fazia panelas que aprendeu os segredos para queimar o barro: era necessário ocar e furar as peças para que o fogo não as estourassem.

 

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Algumas das suas primeiras peças eram cavalinhos, soldadinhos americanos, animais de zoológico e vaqueiros com seus apetrechos. Uma mistura de referências que compunha o universo infantil de um menino do Nordeste atento ao mundo.  Leitor curioso e alguém interessado no mundo das imagens, conta ainda que sempre buscou livros para alimentar seu mundo imagético e, portanto, sua criatividade e inventividade.  Tem nitidamente em sua lembrança de menino a iniciativa desprentensiosa de comercializar seus cavalinhos na venda de seu avô. Com o passar dos anos, esse gesto de menino ganhou real dimensão. Ao ouvir e refletir sobre suas referências percebo que ao crescer e tornar-se o João das Alagoas, João foi capaz de criar um canal de ligação para falar pro mundo sobre ser alagoano e ser nordestino. O universo cultural do artista de origem do interior de Alagoas está espalhado pelo mundo, suas peças são reconhecidas e colecionadas em várias cidades e países. 

 

Desde que se descobriu escultor e antes de se dedicar exclusivamente ao fazer artístico, João trabalhava sozinho e quando sobrava tempo, sobretudo nos dias de folgas e no período em que tinha férias. Nessa época, saía de Capela para vender suas peças no Mercado de Artesanato de Maceió, cidades afastadas entre si por um pouco mais de 60 km. Foi no final da década de 1980, após perder um emprego no comércio, que ser artista tornou-se sua profissão e projeto de vida.

 

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Os objetos feitos pelo Mestre são muito característicos, depois de conhecer um pouco o seu trabalho, percorrendo o olhar atenciosamente pelos detalhes, passa-se naturalmente  a reconhecê-los. O personagem mais famoso esculpido por João é o bumba-meu-boi, geralmente de grande dimensão, que veste uma espécie de manto. É impressionante a riqueza e acabamento dos detalhes, trata-se de um tecido minuciosamente estampado, em baixo e em alto relevo, com símbolos do cotidiano e da cultura alagoana e nordestina, inscrições que transformam a superfície da peça, portanto, o boi,  em uma expressiva narrativa visual sobre as cidades do interior do Nordeste:  trata-se de um boi contador de histórias.

 

As temáticas estampada nessas peças relacionam-se ao folclore, aos folguedos da terra (como o guerreiro, o pastoril, o cavalo-marinho, o reisado), à religiosidade, às brincadeiras infantis (pular corda, o telefone de latinha, o quebra-pote, o quebra coco – uma espécie de quebra-pote onde o coco é o objeto a ser quebrado – e os cavalinhos de pau feitos de cabo de vassoura), assim como cenas que retratam o cotidiano, as barracas de feira, as festas juninas, suas bandeirinhas e o trio de forrozeiros.

 

A cidade é um prato cheio de referências e inspiração, seja em dias comuns ou em dias de festa, os casarios e os mocambos sempre são esculpidos, assim como o mar, o rio, os coqueiros, as árvores frondosas e seus frutos carnudos e/ou suculentos. É perceptível também que tudo está presente em Capela ou já esteve e hoje permanece ou nas ruínas ou nas casas preservadas senão no imaginário nordestino, na lembrança de um passado onde se vivia uma rotina mais ligada aos costumes tradicionais. As brincadeiras retratadas são as que João brincava na sua infância e os folguedos aqueles que via em outras épocas com mais frequência do que vemos nos dias de hoje. Essas peças são, portanto, pura memória cultural, manuscritos de barro onde estão inscritos desenhos que representam a identidade de uma região, do cotidiano do homem do interior do Nordeste.

 

Inserido num entorno de característica rural, que nos conecta ao imaginário impresso nas peças, onde cachorros se divertem livremente, cavalos e vacas pastam sossegadamente, meninos pedalam bicicletas e onde ao longe avista-se a imponente igreja de Nossa Senhora da Conceição, o ateliê do Mestre João das Alagoas é um galpão simples, localizado na beira da rodovia e próximo à entrada da cidade. Atualmente, oito artesãos trabalham no lugar junto com seu Mestre, quatro mulheres e quatro homens: Sil, Nena, Tita e Adriana; Leonilson, Cláudio, João Carlos e Gustavo, esses dois últimos não apenas discípulos mas também são filhos de João. 

 

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Retomando ao início dessa narrativa, o ateliê é uma escola de escultores do barro. É realmente impressionante o trabalho de cada um dos ceramistas. Há um pedaço do Mestre João em cada um deles, contudo, através de detalhes esculpidos descobre-se o jeito particular de cada artista. 

 

Sil de Capela compõe verdadeiros cenários de barro, onde saltam aos olhos as expressões dos rostos do povo retratado. No trabalho dessa artesã há um destaque especial para o Jaraguá, um dos personagens do Guerreiro (o mais popular dos folguedos alagoanos) esculpido em grande dimensão e cheio de detalhes por toda a sua indumentária; assim como os cajueiros e as jaqueiras com seus frutos delicadamente pendurados nas copas das árvores que também servem de abrigo para uma cena de família. O universo  de Adriana é composto por jacas de todos os tamanhos e expressiva delicadeza cujos corpos são preenchidos por inúmeras saliências pontiagudas características do fruto e inseridos de modo minucioso pela artesã. Tita imprime sua arte em casais de namorados e em mulheres que trajam vestidos estampados por inúmeras flores e frutos. Já no trabalho de Nena destacam-se o antigo cinema da cidade, hoje em ruína, os casamentos matutos, as brincadeiras infantis e muitas dessas cenas são esculpidas no interior de um boi ou de grande mandacaru partidos aos meio. Assim como no trabalho de Sil, sempre tem muita gente animando as esculturas feitas por Nena. No trabalho das quatro artesãs a fertilidade parece exalar naturalmente dos objetos, são árvores frondosas, flores, frutas e frutos, mulheres grávidas, mães contadoras de histórias arrodeadas de crianças, casais de namorados e mulheres apaixonadas.

 

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O trabalho dos filhos do Mestre João é mais próximos do estilo do pai e impressionam pela talento herdado em esculpir assim como em transmitir esse saber: um dos seus filhos ministra as oficinais inicialmente idealizadas por João. Há um enorme valor nesse ato e isso imprime ainda mais força para a escola dos ceramistas de Capela, pela capacidade de manter viva a tradição. Já o trabalho de Leonilson é bastante inventivo e de uma plasticidade particular. Em seu presépio nordestino onde os três reis magos são homens retirantes, o anjo é um músico alado, Maria, José e Jesus são uma família de sertajenos, o jovem artesão não apenas recria e ressignifica o nascimento de Jesus como transforma o cacto na árvore de natal onde dispõe todos esses personagens. Destaque ainda, para as esculturas de São Francisco e São Jorge cuja expressividade e fluidez advinda da luta entre o santo-guerreiro e o dragão paralisa o olhar do expectador. Já o trabalho de Cláudio, o mais jovem da escola de Capela e sobrinho de João, impressiona pela escala reduzida de suas peças: ele faz caber uma festa típica do interior, com tudo o que é preciso para fazer um bom forró, numa base que possui uns 20 centímetros de comprimento.

 

Após a queima, algumas peças recebem detalhes coloridos, cores suaves que compõe uma paleta em diálogo com o ocre do barro. O azul e o vermelho estão sempre presentes e são as cores de Alagoas. Na paleta dos ceramistas de Capela, a mistura do azul e vermelho terrosos gera diversos tons de roxo e há ainda, em menor recorrência, a utilização do amarelo-açafrão, do verde aquoso, do preto e de um branco meio caiado.

 

Mestre João das Alagoas é reconhecido como Patrimônio Vivo de Alagoas desde 2011, além de um artista-escultor admirável e um homem generoso, é bom de prosa e sabe, como poucos, falar sobre o lugar em que nasceu e vive. Não é gratuitamente que carrega Alagoas ao lado de seu nome.

 

(Fotos por Michel Rios, junho de 2013 e agosto de 2015.)

 

Comentários

  1. Maíra disse:

    Fantástica a reportagem! Belas as imagens! Me sinto fisicamente neste ateliê, conversando com essas pessoas e admirando suas obras!
    Parabéns!

  2. Dan disse:

    Boa noite. Gostaria de te parabenizar pelas matérias, gostei muito. Obrigada

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