Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Júlia Vidal e o africano que existe em nós

 

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O africano que existe em nós, brasileiros é mais que um livro! É o jeito como essa mulher brasileira vê o mundo: procurando beleza em nossas raízes. E costurando Brasis em tecidos, mas também em qualquer outra superfície que estiver a seu alcance. Ela ia a Salvador sozinha, bem criança, para ouvir o sotaque que faz seu coração bater mais forte; ela faz Culinária de Terreiro, em encontros para amigos e interessados; faz todos dançarem Maracatu, mesmo que no Rio de Janeiro; fez seus estudos virarem um livro e ainda leva Galinha-d´angola e Iansã e Maria Bonita e todo o nosso imaginário pra nos vestir… de Brasil.

 

(Caminhando pelas ladeiras do Morro da Conceição, vi um cabelo com cachos naturais e ao vento, vi uma saia estampada de espontaneidade e, claro, vi também um sorriso aberto. A Júlia viu um grupo de mulheres encantadas com a Rua do Jogo da Bola e abriu as portas de sua casa, abriu a geladeira e nos serviu um suco de fruta brasileira. Ela também abriu as portas de seu ateliê: cabides com abadás, vestidos estampados de África, noivas bordadas de palha. Eu, como poucas vezes acontece, olhava no espelho e me reconhecia como sou: estava vestida de minha infância, de minha adolescência com serenatas, de minhas tias, de minha avó; cada vestido me lembrava uma música de Dominguinhos ou um trecho de Guimarães Rosa; eu estava vestida de toda beleza que sou.)

 

Brasis: Onde você nasceu e passou a sua infância? O que você leva contigo desses lugares?

 

Júlia Vidal: Eu nasci no Rio de Janeiro. Mas a minha família é de Salvador e eu passei boa parte de minha infância lá, eu me envolvi e me apaixonei verdadeiramente por tudo que eu vivia na Bahia. Eu acredito que boa parte do que eu trouxe para o meu dia a dia foi resultado dessa paixão: os blocos afro, as negras se arrumando para desfilar, a linguagem musical. Mais velha eu comecei a me interessar muito também pela questão do Candomblé. Está tudo muito relacionado a uma memória afetiva: culinária, dança, música. Somente depois comecei a traduzir esse afeto em desenho e em moda.

 

Brasis: Atualmente você mora e trabalha no Morro da Conceição, no Rio de Janeiro. Qual é a relação que você tem com esse espaço?

 

Júlia Vidal: O Morro da Conceição aconteceu na minha vida quando começou o circuito Pequena África. Na época, eu escrevi um projeto de coleção que se chamava Solte sua Ginga. A coleção falava sobre como o jeito africano nos influenciou.

 

A primeira vez que eu subi o Morro eu pensei: eu estou em Salvador! Foi uma sensação de ter chegado no meu lugar, eu me senti super em casa. Existem coisas que eu nem vivi em Salvador, mas que minha avó contava e que eu vejo por aqui: os sobrados com várias famílias juntas, todas de frente à bahia, por exemplo. Eu senti uma identificação enorme, eu quis vir pra cá e hoje adoro morar aqui: é um lugar onde as crianças brincam na rua e eu me lembro como isso fez bem pra mim, como foi importante ter essa liberdade quando pequena. Além disso, acontece tudo que tem a ver comigo aqui. É muito bom para facilitar parcerias e conversas, para contribuir com a comunidade e com linguagens que tem muito a ver comigo.

 

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Brasis: Pra você, qual é a o papel da moda no Brasil?

 

Júlia Vidal: Pra mim, a moda é um instrumento para, um meio para. Uma coleção é parte de um processo de apresentação, de introdução a uma temática. Eu trabalho muito na linha de uma moda cultural e educativa, que apresenta contextos e propõe um uso mais consciente da linguagem.

 

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(Coleção Tribos do Brasil por Júlia Vidal. Imagem de divulgação.)

 

Brasis: Você já desenvolveu uma coleção com o nome Brasis, como ela era?

 

Júlia Vidal: Essa coleção surgiu com a intenção de reverenciar todos os Brasis que existem no Brasil. Com o decorrer da pesquisa, eu acabei trabalhando mais focada em tribos indígenas. A coleção reverencia as heranças indígenas, suas 180 línguas faladas e culturas pouco conhecidas e traz o conceito de antropofagia Tupinambá, através da reciclagem de tecidos das coleções passadas. Tribos do Brasil é seu nome final e a coleção se compromete com a integração do indígena à natureza e à comunidade. As peças eco-sustentáveis recebem tingimento artesanal de barro vermelho com inspiração Asurini, urucum, açafrão e beterraba. O espírito colaborativo está presente através de parcerias com cooperativas e comunidades indígenas Guarani, Bororo e Pataxó.

 

Brasis: Quais são as principais reações das pessoas quando conhecem o seu trabalho?

 

Júlia Vidal: Eu tenho recebido muitos retornos positivos, inclusive de professores e alunos de todo o país. Essa percepção de contribuição na forma de produzir moda e repensar a moda brasileira está sendo muito bacana. São pessoas de Minas, do Sul, do Norte dizendo que se sentiram reconhecidas e inspiradas e isso é muito gratificante!

 

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(Pano da costa por Júlia Vidal. Imagem de divulgação.)

 

Brasis: Conte a história de alguma peça criada por você.

 

Júlia Vidal: Tem duas peças que são ícones. A primeira delas é uma túnica que eu chamo de abadá. Essa é uma roupa tradicional da África que é usada desde um momento de reza a uma cerimônia de casamento ou mesmo no dia a dia. Em cada coleção minha, eu faço um abadá diferente, eu sempre faço uma versão dele. A outra peça é o pano da costa, é um pano que originalmente é sobreposto, o meu é amarrado. Ele traz essa simbologia das formas diferentes de amarrar tecidos, tão presentes no cotidiano das culturas negras.

 

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Brasis: Recentemente você lançou o livro O Africano que existe em nós, brasileiros. Qual foi a sua motivação para esse trabalho?

 

Júlia Vidal: Eu fiz desenho industrial, sou formada pela UFRJ e na minha conclusão de curso eu apresentei uma tipografia baseada no africano que existe em nós, brasileiros, para coleções de roupa. Eu senti também a necessidade de fazer um manual acompanhando a tipografia, falando dos grafismos, das etnias. Eu queria propor uma experiência mais consciente com essa estamparia. Quando apresentei o projeto, eu fiz duas roupas usando essa tipografia, uma pra mim e outra para um amigo. As pessoas começaram a me pedir para fazer essas roupas sem parar, mas essa não era a minha intenção principal. Só um ano depois, e por causa dos pedidos, eu comecei a produzir as peças.

 

O livro é um resultado de dez anos de trabalho e começou com esse projeto de gradução, somou-se a meu projeto de pós-graduação e todas as pesquisas que realizei para criar coleções. Esse conteúdo sempre foi a base que eu consultava e alimentava ao longo dos anos. E as pessoas começaram a me procurar por esse conteúdo, então eu entendi que existia a necessidade de compartilhar essa informação.

 

No livro, eu falo um pouco sobre simbologias existentes em algumas etnias e na tipografia eu usei elementos que se repetem graficamente em diversos lugares da África. Existem muitos paralelos de comparação entre informações de história, fotografia… Por exemplo, quando nós olhamos as vestimentas do Norte da África e as imagens de Maria Bonita e Lampião, você percebe que existe algo de África ali. A roupa do orixá na África é diferente da roupa do orixá aqui. A brasileira já tem muita influêcia do português, ela é feita com acabamentos europeus e com amarrações que vieram da África.

 

Brasis: Quem é o africano que existe em nós brasileiros? E como podemos reconhecê-lo no nosso cotidiano?

 

Júlia Vidal: Todos nós. Em algum momento, você vai achar um africano em sua árvore genealógica. Todos nós brasileiros, com certeza.

 

Brasis: Quais são os próximos passos de Júlia Vidal?

 

Júlia Vidal: Desde o início de 2015, uma série de lançamentos estão sendo realizados celebrando os 10 anos de Júlia Vidal com a moda étnica.

 

Brasis: O que você acha que nós não sabemos e deveríamos saber sobre o Brasil? Por que?

 

Júlia Vidal: Muita coisa. Eu ainda também estou procurando saber… O Brasil é tão grande e rico quanto o seu tamanho, eu acho até que é mais! A gente precisa saber se encantar por ele!

 

(Imagens de divulgação.)

 

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