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Inventário de Encontros: Coleção 02 Para–anã–apya–caba

 

Prosear com o Júlio Abe é mesmo um privilégio: ele abre conversas e caixas de documento com o mesmo carinho. Toda palavra é acervo, todo sorriso é colecionável.

 

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Com ele, todos os encontros são aulas sobre histórias brasileiras que não foram contadas. Em algumas idas a sua casa em Paranapiacaba, em São Paulo, meus principais aprendizados recentes sobre museologia e outros nossos acervos.

 

Em um desses dias na vila coberta de nevoeiro e com jeito de Inglaterra (lá moraram os ingleses que construíram estradas de ferro pelo estado e hoje o lugar é tomado por casinhas de madeira e escombros de uma estação de trem), no entroncamento do Caminho do Peabiru (trilhas milenares usadas por ameríndios para visitar parentes e trocar mercadorias), na Mata Atlântica, fui convidada para um encontro que, de tão relevante, decidi registrar em inventário.

 

Um convite à não-hierarquização do conhecimento

 

Vila de Paranapiacaba, Santo André, São Paulo, 28 de abril de 2015. Júlio Abe foi convidado pela Dra. Lilian Amaral, curadora da Plataforma Paranapiacaba, a conduzir o encontro que fazia parte de uma programação quinzenal com a proposta de aproximar as relações e otimizar os recursos (moradores, instituições, profissionais) e pensar potenciais projetos e ações para a vila. Na pauta do encontro, a discussão era em torno de termos como conhecimento sensorial, conhecimento ágrafo e a relação do indígena com a região.

 

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Exatamente por isso e como uma aplicação prática da formulação teórica que estava prestes a compartilhar, Júlio trouxe outros dois convidados e com eles dividiu a fala, sem hierarquização do discurso. Um deles era o cacique e violonista Tukumbó Dyeguaká, Robson Miguel: brasileiro, cafuzo, nascido na região de mangues do antigo aldeamento dos Índios Aribiris, Guarani de Vitória do Espírito Santo. O outro, o cacique Karai Werá, Carlos Aparecido de Carmargo: nascido na Aldeia Guarani, Rio das Cobras, PR.

 

“Nós não vamos falar sobre os ingleses”, introduziu Júlio e reforçou que um novo tipo de olhar para a Vila de Paranapiacaba estava prestes a ser introduzido.

 

O conhecimento oral como acervo museológico

 

Retomando as noções de museu e acervo, Júlio iniciou aquela manhã refletindo sobre o que é passível de patrimonialização: um acervo é necessariamente um conjunto de objetos?

 

Uma das principais características do trabalho de Abe nasce da sua imensa capacidade de ver a riqueza histórica, cultural e social de recursos que não eram, antes de seu sensível olhar, reconhecidos como valorosos para museologia. Assim foi quando ele começou a introduzir a percepção de que ruas e outros trajetos urbanos são espaços expositivos em potencial, como também aconteceu quando ele compreendeu que o conjunto de objetos de uma família poderia ser pesquisado como acervo histórico e principalmente nos seus trabalhos que reforçaram a necessidade de valorizar experiências, fazeres, rituais e saberes como patrimônios imateriais brasileiros.

 

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Nessa linha, Júlio vem realizando diversos projetos nos últimos anos com o objetivo de compreender registros linguísticos e territoriais indígenas que podem ser considerados acervos museológicos. Naquela manhã ele explicou que, na região onde hoje se encontra a Vila de Paranapiacaba, existe um território muito significativo com um acervo de dois a três mil anos.

 

“O território do estado de São Paulo foi nomeado – geografia, rios, montanhas – há mais de dois mil anos. Quando os portugueses chegaram, já havia nomes dados pelos indígenas”. A comunidade linguística tupi-guarani ocupava cerca de nove mil quilômetros de território na América Latina e eles foram os responsáveis pela escolha dos nomes que até hoje repetimos para nos referir a determinados locais, por exemplo, do estado de São Paulo. Diferente dos europeus que se utilizavam de uma toponímia (escolha arbitrária de nomes de santos ou de pessoas consideradas importantes na época) para definir um local, na forma Guarani o nome não é algo que se dá a um lugar, o nome do lugar é o que o lugar é.

 

A língua Tupi é, na verdade, um tronco linguístico que originou outras 26 línguas, inclusive o Guarani.  É uma matriz que esconde complexos códigos: o nome de um animal já antecipa as suas características… se ele voa, se é cavador, se tem hábitos norturnos ou diurnos. O nome de um lugar diz o que existe ali. _ Robson Miguel.

 

Segundo Robson Miguel, em Guarani existem cerca de 300 códigos que se aglutinam para formar diferentes significados, ou seja, desde aí existe uma organização de conhecimento diferente da de idiomas europeus como o português, fortemente ancorado em palavras. E esse conhecimento é passado oralmente porque a sabedoria indígena defende que quando uma pessoa diz algo “é o seu espírito que está falando e transmitindo o seu conhecimento no seu tom de voz e se outra pessoa diz a mesma coisa, já existe mudança de significado”.

 

A nossa história não se escreve. Na cultura Guarani, a gente aprende que o homem branco é aquele que precisa escrever pra lembrar. A gente aprende que a América foi feita para os povos vermelhos e que a eles Deus deu a sabedoria da fala. Então a língua indígena não foi feita para ser escrita, foi feita para ser falada. Não existe recurso no vocabulário português para traduzir o que é falado. _ Robson Miguel.

 

Quando transpomos essa sabedoria linguística Guarani para os territórios, entendemos a importância de – segundo proposto por Abe – observarmos com atenção os nomes de caminhos, geografias e destinos de uma grande região do país. Se esses trajetos já tinham sido nomeados pelos indígenas, grandes conhecedores da região, e se a sua matriz linguística é oral e esconde complexos códigos, o que existe de valioso sobre nossos territórios que essa cosmogonia Guarani pode nos apresentar?

 

Com relação aos caminhos e sua nomenclatura, os trajetos ameríndios – segundo Robson Miguel – são sinalizados por pelo menos sete tipo de códigos distintos: olfativos, fluviais, de tato, de fumaça, de árvores, linguísticos e através dos animais. A partir do que existe à margem esquerda de um rio e da junção de pelo menos esses sete tipos de códigos, surgiram as frases orais que marcaram a sabedoria de deslocamento por boa parte da América Latina.

 

O indígena sinaliza através do que vai encontrando até chegar ao destino. O branco faz um mapa. _ Robson Miguel.

 

Talvez por essa noção da presença, do que existe nos locais, os caminhos indígenas foram e ainda são utilizados por milênios.

 

Nessa linha, Júlio Abe propõe que a troca ou tradução dos nomes é um erro histórico, já que trocar o nome de um caminho é jogar fora um documento, um acervo, que revela o que existia – e algumas vezes ainda existe – em algum lugar.

 

Por uma musealização do território

 

Reconhecido esse novo tipo de acervo, o documento oral de caminhos indígenas, Júlio Abe acredita que os itinerários brasileiros podem ser passíveis de musealização através da perspectiva de musealização de territórios. Para isso, em sua opinião, o primeiro passo seria uma re-identificação desse acervo histórico: já está tudo determinado e definido, somente falta uma re-identificação. As informações já estão aí, mas ninguém sabe exatamente o porquê desses nomes.

 

No estado de São Paulo, na antiga rota do Pearibu (o caminho do antigo Peabiru foi usado de forma contínua ao longo de muitos séculos e até hoje é utilizado: os europeus, os bandeirantes e os tropeiros passaram pelas mesmas estradas indígenas e os caminhoneiros usam até hoje o mesmo caminho), os nomes dos lugares ainda são majoritariamente tupi-guarani. Logo, segundo Abe, para conhecer o acervo oral indígena na região, basta seguir uma rota indígena, claro, com a presença de falantes e conhecedores dos idiomas nativos.

 

E um dos trajetos que podem ser percorridos em uma imersão de re-identificação desse acervo oral passa justamente pela Vila de Paranapiacaba. Quando os portugueses começaram a fazer os caminhos indígenas, eles tentavam entender e escrever o que os nativos diziam sobre os trajetos, mas nem sempre conseguiram. Quando chegaram no local onde hoje é a Vila de Paranapiacaba, eles acreditavam que esse som (que, em português, poderia ser escrito como paranapiacaba) era o nome do lugar. Mas na verdade, os Guaranis, que eram os guias da imersão, estavam apenas informando a todo o grupo de caminhantes que já era possível ver o mar.

 

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Para – anã – apya – caba: lugar de onde se vê o mar brilhando

Para: mar ou grande rio

Anã: brilho

Apy: aqui

Caba: lugar

 

(Fotos por Mayra Fonseca.)

 

A editoria Dedo de Prosa traz histórias brasileiras inspiradoras, destacando as pessoas e seus ofícios. A seção Inventário de Encontros é feita por Mayra Fonseca e traz uma coleção de suas prosas em diferentes viagens pelos Brasis.

 

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