Brasis. As traduções da cultura cotidiana do Brasil.

BRASIS. CULTURAS E COTIDIANOS DO BRASIL.

Maracatu

Maracatum tum: saia do lugar!

 

Uma reflexão após quatro meses de contato, pesquisa e co-criação com a palavra Maracatu:

 

 

Há cinco meses atrás, no Recife antigo, eu estava com Suann Medeiros nos ensaios de Maracatu, e reconheci o querido Vincent Moon: naquela noite, eu me arrepiei ao ouvir as alfaias fazendo uma melodia que eu sabia que já tinha dançado muitas vezes. “É Luiz Gonzaga!” _ respondeu o Mestre entre um apito e outro. No dia anterior, estivemos em Olinda com o filho do Mestre Salustiano, importante figura do patrimônio imaterial brasileiro. Um dia depois, estávamos todos em Nazaré da Mata conversando com o Mestre Anderson, o mais jovem Mestre do mais antigo Maracatu do Brasil.

 

 

Em seis meses de contato com essa palavra que anuncia o nome de um dos mais recentes bens imateriais do nosso país, ouvimos sobre a sua tradução no estado do Ceará, subimos e descemos ladeiras com os principais grupos percussivos do Vale do Paraíba em São Paulo, trocamos fotos com um Mestre de Brasília, descobrimos um Maracatu de Jabuti no Jatobá cantado pelo Nhabumzim, falamos com a pernambucana que rompeu preconceitos e fundou o primeiro Maracatu 100% feminino do Brasil, estudamos histórias de damas e rainhas que extrapolam categorias de gênero com suas saias rodadas liderando o ritmo de todo um bloco. Participamos de ensaios e apresentações no Paraná, conhecemos grupos nas favelas do Rio de Janeiro, descobrimos o trabalho de economia criativa e colaborativa por trás da produção de alfaias para as comunidades maracatuzeiras.

 

Escutamos, observamos, aprendemos um pouco. Dedicar meses ao estudo conjunto de uma palavra brasileira foi o exercício mais etnográfico que fiz desde que terminei um mestrado nessa área. Ter feito isso em conjunto com outros brasileiros em busca do autoconhecimento fez dessa experiência tão mais prazerosa quanto consistente. E, claro, imperfeita: compartilhar um processo de aprendizado que é feito com outros é escolha que prima pelo movimento conjunto e não pela percepção de perfeição, menos ainda pelo acabamento; começar um processo com uma pergunta (O que significa Maracatu pra você?) e não com uma verdade (Maracatu é.) é mesmo tão ingênuo quanto verdadeiro. Como resposta: 15 traduções feitas por 12 brasileiros: sambadas, fotografias, ilustrações, postais, colares…

 

Essa é a escolha, pelo menos por ora, da editoria Bê-a-bá do Brasis: fazemos uma imersão local para iniciar um biblioteca de referências que é imediatamente compartilhada, estudamos uma palavra brasileira junto com todos que aceitarem o nosso convite, recebemos e compartilhamos traduções dessa palavra, depois sentimos e contamos o que aprendemos com o processo.

 

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As palavras brasileiras trazem consigo complexos códigos culturais

 

E são um encantador convite para a ação: é impressionante o potencial que despertamos ao iniciar um contato entre criativos e uma palavra brasileira. A ideia de conhecer e traduzir um som que faz parte dos convites a festas na cidade, do imaginário de um lugar ou que ecoa na lembrança de alguma aula de geografia é faísca que atrai pessoas para o assunto.

 

“É aquele tipo de música, não é?” _ escutamos. Pra vários de nós, Maracatu retoma justamente um registro sonoro. Mas uma única e final tradução não parece possível: nem pelos inventários do IPHAN, nem na voz das sambadas dos mestres. Isso porque Maracatu retoma as noções de origem (Jurema Sagrada e Afro, Zona da Mata e Canaviais, parentes e nações), de espiritualidade, de ritmo, de criatividade, de resistência histórica. Maracatu, em uma definição falada por um Mestre ao Projeto Híbridos é um comando de voz: “saia do lugar!” Esse é o grito entre maracatuzeiros que significa que alguém está se aproximando para criticar, para interromper, para fazer o brinquedo parar. É, sim, um tipo de música… que traz consigo um código de luta.

 

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Precisamos salvarguardar o imaterial e o local

 

Tum, tum… e lá vamos nós, saindo do lugar, ao som de um baque. Nas periferias das capitais, nas zonas rurais e urbanas, nos feriados e dias de festa. E depois, diante do papel em branco, tentamos achar uma categoria que explique o que vivemos: música.

 

Também, mas como explicar a sensação de uma saia de flores rodopiando em compasso e ativando a nossa memória… a memória de nossos corpos (como diz a Diane Lima, diretora criativa do NoBrasil)? Há séculos temos tido dificuldade para Olhar para alguns dos principais legados das culturas brasileiras: os imateriais. Eles moram nos verbos: fazer, participar, brincar. Jeitos de se manifestar que são ferramentas valiosas no mundo contemporâneo.

 

Se a vivência é o grande legado, é preciso celebrar – e valorizar e reverenciar e denominar – o seu contexto de origem. Conhecemos ainda muito pouco sobre nós mesmos para ignorar os aspectos naturais e culturais que propiciaram o surgimento – e resistência e evolução – de um bem imaterial como o Maracatu. Basta ouvir com atenção as letras das sambadas para ficar claro que aquele cenário e o próprio Maracatu se confundem, é preciso experenciar pelo menos uma madrugada de ensaio para ter um repertório de sensações que permita um contato sincero com um maracatuzeiro. As Cambindas da Zona da Mata pernambucana inspiram linguagens e produtos, mas os Mestres ainda lutam para manter seus terreiros e galpões de costura. Por isso, falar sobre Maracatu é falar sobre o lugar onde ele começou, é pensar em como aquelas comunidades podem salvaguardar esse patrimônio cultural que para eles também é sustento financeiro e de alma, é reconhecer que ele existe a partir de uma economia tão criativa quanto solidária e portanto que tem muito a nos ensinar.

 

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A nossa linguagem é en(cantada)

 

Nada melhor explica o rompante do coração ao último fio de cabelo, do coração à sola do pé, que nos invade quando um Maracatu acontece.

 

Por todos esses aprendizados, seguimos felizes. Continuaremos ouvindo e recebendo traduções de Maracatu. Mas, já é hora de começarmos uma nova brincadeira: pra você, o que são os Encantados?

 

(Fotos por Mayra Fonseca. Maracatu em Festa do Divino em São Luiz do Paraitinga, São Paulo, 2015)

 

Acompanhe as publicações independentes do Brasis para comprar algumas das artes e traduções co-criadas nesta editoria e ainda contribuir para o sustento do projeto.  

 

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